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De juiz cara de pau a submarino: livro destrincha rota do tráfico no país

Rodrigo Casarin

02/03/2018 10h34

"No Brasil, suspeitas de envolvimento de promotores e juízes com o narcotráfico perduram no tempo. No fim dos anos 1980, um juiz federal de Campo Grande (MS) inocentou um traficante flagrado com 1,2 tonelada de maconha alegando que o laudo pericial não apontava se a droga era 'macho ou fêmea'. Além disso, determinou a devolução do carregamento ao seu dono… O magistrado chegou a ser indiciado pela CPI do narcotráfico em 1991, mas a investigação contra ele não foi adiante".

Peculiaridades preciosas como a lembrança do juiz cara de pau acima são o melhor de "Cocaína – A Rota Caipira", livro-reportagem de Allan de Abreu. Publicado em 2017 pela Record, o tijolo com mais de 800 páginas destrincha não apenas como o narcotráfico age no interior de São Paulo, uma das regiões mais importantes para a logística dos grandes traficantes brasileiros, mas expõe como funciona toda a cadeia desse mercado que opera em escala global.

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Abreu entrega ao leitor um trabalho repleto de cenas dignas de filmes de ação, com perseguições e balas voando para tudo que é lado. Na reconstrução de diversas histórias ligadas ao universo das drogas – são tantas que em determinado momento a narrativa se torna repetitiva e um pouco cansativa -, o destaque está na ótima reconstrução de diálogos. Numa época em que a hierarquia e o território das quadrilhas parece passar por uma reformulação no país, o título se torna ainda mais relevante.

Voltando aos pormenores, o autor conta, por exemplo, que na Bolívia a fiscalização da fronteira é feita por militares que têm entre 16 e 18 anos e, num mês, recebem pouco mais do que o suficiente para comprar uma latinha de refrigerante, ou seja, é preciso de muito pouco para corrompê-los. Ali perto, em certa região do Mato Grosso do Sul, a lei de trânsito é diferente da praticada no restante do país: por lá a promotoria pediu para que os agentes parassem de multar os motociclistas que não usam capacete. O motivo? O acessório de segurança serve para que assassinos escondam seu rosto quando vão executar um inimigo, então, se ninguém usa capacete, fica mais fácil de deduzir quando alguém está prestes a cometer um assassinato.

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Destrinchando o modus operandi de diversos traficantes, lembra de ousadas estratégias já pensadas para levar entorpecentes ilícitos de um canto a outro do mundo – há suspeita de que até o Hezbollah, grupo paramilitar libanês, esteja na jogada. Um bolou um submarino para o transporte de até 5 toneladas de cocaína, outro quis exportar drogas em caixas impermeáveis acopladas a cascos de navios cargueiros por meio de ímãs gigantes, também já deram um jeito de misturar o pó com combustível para que a mercadoria pudesse ser escondida em tanques de camionetes… A criatividade – e a habilidade dos químicos e alquimistas envolvidos em alguns casos – impressiona.

A leitura de "Cocaína – A Rota Caipira" também pode ser boa para quem insiste em pensar que o universo das drogas se limita à caricatura do dependente vagando pela rua ou do cara de chinelo, bermuda e sem camisa, com o fuzil pendurado no peito. "Caipira também cheira; caipira também fuma pedra, baseado. Do mendigo de trapos e pés sujos no centro degradado de Campinas ao novo-rico de terno impecável em seu apartamento de luxo na João Fiúza, opulência maior da elite ribeirão-pretana. A droga arrasa as mais rígidas fronteiras de classe", escreve o autor. Indo além, mostra que os grandes mercadores do pó vivem andando por aí em carros pomposos e investem pesado em mansões e fazendas com centenas e até milhares de cabeças de gado – ou seja, é gente que faz parte da elite econômica do país.

No livro são muitos os casos de grandes traficantes que acabam atrás das grades – aliás, por mais que Abreu fale da corrupção policial, a impressão que transmite da polícia é extremamente positiva -, mas não que o encarceramento mude muita coisa. "É certo que muralhas não detêm o poderoso fluxo das drogas. Nem as de uma prisão. Celulares e chips entram nas celas ao sabor da vontade dos que nela estão. E um telefone é tudo de que um grande traficante precisa para manter seus negócios aqui, do lado de fora. Sem controle do sinal de telefonia móvel, penitenciárias se diferenciam pouco de grandes edifícios comerciais, com celas se transmutando em escritórios do crime".

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Sei que não há novidade nisso, mas é sempre importante relembrar. Assim como é importante relembrar o que acontece com muitos criminosos comuns dentro da prisão, como foi o caso de João Alves de Oliveira, o Batista, que entrou para a criminalidade na década de 90: "A primeira condenação judicial veio em 1997, por receptação, em Osasco: três anos de cadeia. Batista mal terminou de cumprir a pena e, em 2000, recebeu outra condenação, desta vez por roubo em Mogi das Cruzes. Mais quatro anos e três meses de reclusão. Dois anos depois, foi sentenciado a mais seis anos e sete meses de cadeia pela 12ª Vara Criminal de São Paulo. Nesse período, Batista peregrinou por vários presídios paulistas: Casa de Detenção em São Paulo, CDP na capital, Campinas e Franco da Rocha, e pelo menos três penitenciárias".

O resultado de todo esse tempo enjaulado? Adivinha? "Na convivência com traficantes presos, fez pós-graduação no comércio de drogas. Quando deixou as grades, a dez dias do Natal de 2007, organizou seu próprio negócio no tráfico". No final, tudo soa como um ciclo que se repete ad eternum.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.