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Curioso e precioso, livro reúne histórias coreanas com mais de 500 anos

Rodrigo Casarin

08/12/2017 10h01

Kim Si-seup.

Um casal improvável separado pela guerra. Um homem que desafia Buda pela promessa de amor eterno. O embate de ideias religiosas e filosóficas entre um estudioso e o rei do mundo dos mortos. Essas são algumas das histórias que fazem parte de "Contos da Tartaruga Dourada", de Kim Si-seup, publicado no Brasil pela Estação Liberdade. Curioso e precioso, o volume reúne narrativas escritas na Coreia há mais de cinco séculos, muitíssimo antes da península ser dividida em dois países em pé de guerra.

Si-seup viveu no começo da dinastia Joseon, conhecida como o "Reino das Manhãs Calmas", que começa em 1392 e vai até 1897. Antes disso, o país vivia sob a dinastia Goryeo, chama de o "Reino da Alta Beleza", iniciada em 918 – as alcunhas das dinastias já soam como poesia. Com a mudança, encerrou-se o domínio budista na Coreia e se estabeleceu um estado baseado nas ideias de Confúcio. Essa ruptura permeia todas as histórias de Si-seup em "Contos da Tartaruga Dourada", apontada como a primeira obra de ficção escrita por um coreano – até então, os textos costumavam se limitar a propagações ideológicas ou folclóricas.

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"Ele foi um pioneiro daquela época por ter sido um nobre letrado a criar histórias ficcionais. Coincidentemente, sua obra é contemporânea à criação do alfabeto coreano, que rapidamente se alastra entre as classes mais baixas. A partir de então, temos uma produção mais expressiva de obras ficcionais. Portanto, ele está na passagem, dentro da história da literatura coreana, em que as linhas que separam a literatura da alta nobreza e a do povo vão ficar mais borradas", conta Yun Jung Im, tradutora do volume para o português.

Jung nasceu na Coreia do Sul e veio para o Brasil com 10 anos, é mestre em Literatura Coreana Moderna pela Universidade de Yonsei e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Para explicar como a obra de Si—seup fala aos leitores de hoje, recorre a uma palavra que não exite em português, mas diz expressar bem a ideia por trás dos escritos do autor: "injustiçamento".

"O tema do injustiçamento, como um ato do mundo macro sobre um individuo, esteve sempre presente na história da literatura de todos os povos. Vemos nos contos dele o desejo de redenção e de justiça cósmica que constitui um desejo atemporal dos humanos, ainda que o conteúdo dos injustiçamentos sejam diferentes. Há ainda o sentimento de deslocamento, de conflito entre o real e o desejado, que também é atemporal. A catarse que sentimos com a redenção oferecida aos personagens principais dos contos não é diferente da catarse que sentimos com personagens da literatura moderna".

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É interessante notar como nos contos escritos do outro lado do mundo há mais de 500 anos surgem parágrafos que poderiam muito bem ter sido escritos no Brasil de hoje. Um exemplo: "Meu menino cometeu uma traição momentânea por ser ainda bastante jovem, mas é seriamente estudado e possui uma aparência que também não é de causar vergonha a outrem. Nosso desejo é que, daqui para a frente, passe no concurso público e no futuro se torne um administrador renomado. Não desejamos buscar um casamento às pressas".

São notórias também as referências culturais que despontam nas histórias. Em "Um Jogo de Varetas no Templo das Mil Fortunas" conheci Xi Shi, que nasceu no século 6 a.C. e ficou conhecida como uma das quatro beldades da China Antiga. Reza a lenda que ela era tão bela que, ao se inclinar sobre um lago para ver os peixes, estes ficavam admirados com sua beleza, esqueciam-se de nadar e acabavam se afogando.

E, como disse no começo da matéria, impossível olhar para o volume e não pensar na divisão entre Norte e Sul que aconteceu na Coreia há pouco mais de seis décadas. "Dizemos que a história coreana tem 5 mil anos, porque a data atribuída ao início do primeiro reino coreano é 2.333 a.C., embora não se possa afirmar que essa data seja histórica, mas sim mítica. De qualquer modo, mesmo numa contagem modesta, a nossa história ultrapassa 3 mil anos. Dessa perspectiva, a separação da península é um tempo bastante curto", comenta Yun.

A tradutora, no entanto, faz uma ressalva sobre a literatura por lá nas últimas décadas. Ela explica que a partir da segunda metade do século 20, diversos autores passaram a tratar especificamente da divisão do país, criando também uma ruptura literária – sob essa ótica, passa a fazer sentido falarmos não de literatura coreana, mas de literatura sul-coreana, por exemplo. "Importante destacar que boa parte da literatura produzida na segunda metade de século 20 traz, de alguma forma, direta ou indireta, as feridas da guerra e da separação".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.