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Novo livro de J. K. Rowling mescla boas passagens com momentos ingênuos

Rodrigo Casarin

18/10/2017 09h39

"A imaginação não é apenas a capacidade exclusivamente humana de idealizar o que não existe e, portanto, a fonte de toda invenção; em sua capacidade seguramente mais transformadora e reveladora, é o poder que nos permite sentir empatia pelas pessoas cujas experiências nunca partilhamos".

Os momentos nos quais J. K. Rowling fala sobre a imaginação e, pela sua abordagem, consequentemente de empatia, são os mais interessantes do livro "Vidas Muito Boas", que a Rocco acaba de lançar no país. A obra, ilustrada por Joel Holland, traz o discurso que a autora de "Harry Potter" fez em quando foi paraninfa de um grupo de formandos em Harvard, em 2008.

"Muitos preferem não utilizar de forma alguma sua imaginação. Preferem se manter confortavelmente dentro dos limites da própria experiência, sem jamais se dar ao trabalho de imaginar como seria ter nascido outra pessoa. Eles podem se recusar a ouvir gritos ou espiar dentro das celas; podem fechar a mente e o coração a qualquer sofrimento que não os afete pessoalmente; eles podem se recusar a tomar conhecimento", registra a autora no texto que proferiu aos formandos.

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Ainda que não seja obrigatório, é previsível que em um discurso do tipo o autor concentra a fala em sua biografia, e é isso que Rowling. Da trajetória pessoal enfocada, dois momentos merecem destaque. O primeiro é quando ela recorda o que aprendeu enquanto trabalhou no departamento de pesquisa africana da sede da Anistia Internacional em Londres: "Ali, em minha salinha, eu lia cartas escritas às pressas, e enviadas clandestinamente de regimes totalitários, por homens e mulheres que se arriscavam à prisão para informar ao mundo o que acontecia com eles. Vi fotografias daqueles que tinham desaparecido sem deixar rastros, enviadas à Anistia por familiares e amigos desesperados. Li o testemunho de vítimas de tortura e vi imagens de seus ferimentos. Abri relatos de testemunhas oculares, escritos de próprio punho, sobre julgamentos e execuções sumárias, raptos e estupros".

O outro é quando conta sobre sua decisão de estudar academicamente mitologia e as obras clássicas – ela é formada em Línguas Clássicas e Literatura Francesa -, algo que contrariava a vontade de seus pais, mas acabou sendo fundamental para que tivesse base para escrever sua famosa saga (e para que pudesse pontuar sua fala com citações de gente como Plutarco e Sêneca, que surgem como luxuosos acessórios no discurso).

"Eu estava convencida de que a única coisa que queria fazer, na vida, era escrever romances. Meus pais, porém, que tiveram origem pobre e não se formaram na universidade, consideraram minha imaginação fértil uma idiossincrasia divertida que jamais pagaria uma hipoteca ou garantiria uma aposentadoria […]. De todas as matérias deste planeta, creio que para eles seria difícil citar uma menos útil do que mitologia grega quando a questão é garantir a chave de um banheiro executivo".

Fracasso

A imaginação não é o único eixo no qual Rowling apoia seu discurso. Nele, também fala bastante sobre o fracasso, algo que, como ela mesmo diz, provavelmente seja pouco familiar para quem está se formando em Harvard (ou no mínimo baseado em padrões muito mais elevados do que o fracasso de um cidadão médio). Para tal, a escritora lembra do seu próprio fundo do poço: sete anos depois que se formou, o casamento implodiu, ficou desempregada, tornou-se mãe solteira e era tão pobre "quanto é possível ser na Inglaterra moderna, sem ser uma sem-teto". O que tirou daquele momento? As forças para escrever "Harry Potter", claro.

"Fracassar significa se despojar do que não é essencial. Parei de fingir para mim mesma que eu era qualquer outra coisa além do que realmente era e comecei a direcionar toda a minha energia para a conclusão do único trabalho que me importava. Se de fato tivesse obtido sucesso em outra coisa qualquer, talvez jamais encontrasse a determinação para vencer na única arena a que eu acreditava verdadeiramente pertencer", diz Rowling.

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É nesse momento que seu discurso soa bastante ingênuo, com um tom próximo da autoajuda. Ora, ela soube lidar com o fracasso e conseguiu criar algo que lhe trouxe um enorme sucesso alguns anos depois – a saga do bruxo está traduzida para 79 línguas e já vendeu mais de 450 milhões de exemplares -, mas isso está longe de ser uma regra, não é mesmo? Ela poderia ter direcionado toda a energia e determinação para a única arena na qual acreditava verdadeiramente pertencer e ainda assim colher apenas um novo fracasso, como acontece com a maioria por aí. Apenas concentrar forças não costuma ser suficiente para que as pessoas consigam algo. Também é preciso uma conjunção de outros fatores que vão desde uma base sólida para que o trabalho seja realizado – a formação e a imaginação de Rowling, no caso – até fatores que fogem do controle da própria pessoa, como achar algum editor que aposte naquilo e leitores receptivos à história.

Outro momento de certa ingenuidade é o final do discurso da escritora: "Se vocês escolherem usar seu status e sua influência para elevar a voz por aqueles que não têm voz; se escolherem se identificar não apenas com os poderosos, mas também com aqueles que não têm poder; se vocês conservarem a capacidade de se imaginar na vida dos que não possuem as mesmas vantagens que vocês, então não serão apenas suas famílias orgulhosas que irão comemorar sua existência, e sim milhares e milhões de pessoas cuja realidade vocês ajudaram a mudar para melhor. Não precisamos de magia para mudar o mundo; todos já temos dentro de nós o poder de que precisamos: o poder de imaginar melhor".

Sei que são palavras reconfortantes, mas é difícil acreditar que haja tantas pessoas assim que não imaginem um mundo melhor. No entanto, como aponta, isso precisa ser levado à prática; boas ideias que não saem da cabeça infelizmente não mudam a realidade de ninguém. Além disso, para que uma mudança profunda aconteça, na maior parte das vezes é preciso romper ou conflitar com os poderosos, não apenas olhar também para os que não têm poder; é preciso tirar ou diminuir o poder de um e transferi-lo para o outro.  Apesar de certas virtudes de Rowling, quando o assunto é discurso de paraninfo, é melhor ficarmos com o "Isto é Água", do David Foster Wallace.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.