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Nobel de 1957, Camus chamou o Cristo Redentor de “lamentável” em seu diário

Rodrigo Casarin

06/09/2017 05h58

"Já estamos na baía, imensa, um pouco fumegante no dia que nasce, com súbitas condensações de luz, que são as ilhas. A névoa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o 'Pão de Açúcar', com quatro luzes no seu topo, e no mais alto cume das montanhas, que parecem esmagar a cidade, um imenso e lamentável Cristo luminoso".

Desta forma que o franco-argelino Albert Camus, Nobel de Literatura de 1957, refere-se a um dos maiores ícones do país. Dos autores mais importantes do século 20, chegou ao Rio de Janeiro de navio e logo de cara desaprovou a estátua que é Patrimônio da Humanidade segundo a Unesco. A cornetada no Cristo Redentor está em seu "Diário de Viagem", livro que a Record acaba de relançar por aqui junto com outros quatro títulos do autor – "O Estrangeiro", "A Peste", "A Queda" e "O Homem Revoltado".

Camus passou por diversas cidades brasileiras em meio a uma turnê pela América do Sul que realizou entre junho e agosto de 1949. Nas suas anotações, mostra-se, por exemplo, admirado com Salvador e crítico a Teresópolis ("A todo momento, este enorme continente sem estradas, todo entregue à selvageria natural, pode revoltar-se e recobrir essas cidades falsamente luxuosas"). Pela cara na foto abaixo, gostou da feijoada que comeu na casa de Oswald de Andrade.

Dentre as anotações, um aspecto que me chamou bastante atenção é como Camus se assustou com a brutalidade do trânsito por aqui. Se hoje os acidentes com carros matam mais de 47 mil pessoas por ano no Brasil e deixam outros 400 mil sequelados (os dados são da Organização Mundial da Saúde), na década de 1940 o escritor detectou o princípio desta lamentável realidade:

"Sou acolhido diante da Embaixada por uma dessas cenas por demais frequentes no Rio. De novo, uma mulher estendida, sangrando, diante de um ônibus. E uma multidão que olha, em silêncio, sem prestar-lhe socorro. Esse costume bárbaro me revolta. Bem mais tarde, ouço a sirene de uma ambulância. Durante todo esse tempo, deixaram morrer essa infeliz em meio aos gemidos. Em compensação, dão demonstrações de adorar crianças".

Já em São Paulo, Camus foi levado para conhecer aquela que, diziam-lhe, era a "mais bela" penitenciária do Brasil (quem achou que seria uma ideia agradável levar alguém pra conhecer um presídio? Baita mau gosto). O autor encontra um cenário semelhante às prisões dos Estados Unidos e, mais tarde, revela o que Oswald lhe contou sobre o lugar: "Após minha conferência, Andrade me informa que, no presídio-modelo, já se viram detentos suicidarem-se batendo a cabeça contra as paredes e apertando a garganta numa gaveta até a asfixia". Em nenhum momento o francês diz qual o nome da detenção onde o levaram para passear.

Camus morreu em 1960, aos 46 anos, ironicamente em um acidente de trânsito e, aparentemente, sem jamais ter explicado as razões pelas quais considerou o Cristo algo "lamentável".

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.