Topo

Você acha que ser gay é moda? Histórias de heróis e deuses mostram que não

Rodrigo Casarin

22/08/2017 09h22

De Galo estando a ler uns livros em que ousara
a palma e a glória dar ao pai e não a Cícero,
de Cícero encontrei lascivo ludo, digno
de ver, de engenho igual com que obras sérias fez,
mas bem mostrou que à mente de varões ilustres
agrada o humano sal e a mui variada graça.
Reclama que o frustrou Tirão, doloso, e os beijos
pouquinhos que devia não lhe deu Tirão
à noite após a ceia quando ardia. Li
e indago aqui: por que calar nossos amores,
temer o público, não confessar que os dolos
de Tiro conhecemos e a fugaz blandícia
de Tiro e furtos que só trazem novas chamas?

Dentre as muitas besteiras que andam sendo ditas por aí, uma que faz algum sucesso entre os homofóbicos é papagaiar que ser homossexual, bissexual, transexual ou qualquer coisa diferente de heterossexual é uma "moda". Um livro que comprova que tal discurso é uma grande bobagem e que a diversidade sexual sempre acompanhou o ser humano é "Por Que Calar Nossos Amores?", recém-lançado pela Autêntica e de onde retirei o episódio acima entre Cícero e Tirão narrado por Plínio, o Jovem, que viveu entre os séculos 1 e 2 d.C.

Reunindo nomes clássicos como Catulo, Virgílio, Horácio, Ovídio e o próprio Plínio, "Por Que Calar Nossos Amores?" é uma antologia que apresenta poetas latinos de diversas gerações compondo versos homoeróticos. O pesquisador e doutor em Estudos Literários pela UFMG Márcio Meirelles Gouvêa Junior, um dos organizadores do volume ao lado de Raimundo Carvalho, Guilherme Gontijo Flores e João Angelo Oliva Neto, lembra que a temática aparece já nos primeiros registros da literatura ocidental.

"Presente desde o despontar grego nos cantos homéricos, como por exemplo nas sutis interpretações possíveis da ligação afetiva entre Aquiles e Pátroclo, na 'Ilíada', o homoerotismo, como temática literária, sempre foi assunto dos poetas, decerto como reflexo inevitável das práticas amorosas humanas, ainda que sempre moduladas pelos valores de cada tempo", recorda.

"Como temática abundantemente desenvolvida em contexto grego, o homoerotismo encontra-se presente nas letras latinas, em grande medida, como um exercício literário, de modo a valorizar e engrandecer a obra, por meio de sua vinculação aos textos helênicos, não sendo, portanto, objeto de preconceitos durante a antiguidade", explica Márcio. "Deve-se também ter em mente que a própria prática do homoerotismo não era vista segundo os critérios atuais. Havia, decerto, incontáveis formas de preconceito, mas, diferente de hoje em dia, não se vinculavam especificamente à questão do gênero, e sim à forma de uso dos prazeres. Mais importante do que o gênero do parceiro, era, pois, a posição hierárquica de poder estabelecida na relação", completa o organizador, dando uma ideia de como esses versos costumavam ser recebidos.

Hilas e as Ninfas, quadro de John William Waterhouse.

Heróis e deuses

"Por Que Calar Nossos Amores?" é um volume bilíngue recheado de textos que contextualizam o tema e os autores nele apresentados. Quem assina um desses textos de apoio é o também organizador Raimundo Carvalho, professor de Língua e Literatura Latina, que comenta como os escritores lidavam com o homoerotismo em seus escritos. "Para um poeta romano, assim como para seu modelo grego, não havia nenhuma dificuldade em projetar seu 'ego' poético na descrição de uma relação homoerótica, seja num epigrama, seja numa elegia, seja numa ode. Os próprios deuses e heróis semidivinos são mostrados em ação, atraídos pela beleza de algum jovem mortal", comenta. Um bom exemplo desse tipo de personagem que Carvalho menciona é Hércules, que em "Argonautica", de Valério Flaco, perde as estribeiras quando Hilas, seu companheiro, desaparece.

"Ressaltam-se nestes poemas, além da beleza dos corpos, a intensidade da paixão amorosa, correspondida ou não. Para os romanos antigos, estes textos tratam, antes de mais nada, de erotismo, sem as especificidades homo ou hétero, como acostumou-se a dividir nossa sensibilidade formada pelos discursos cientificistas do século 19", continua Carvalho.

Voltando a Márcio, levando em conta o volume, o que ele diria àqueles que acham que qualquer coisa diferente da heterossexualidade é um modismo? "Em uma resposta singela, eu diria que falta a essas pessoas um olhar historicamente mais amplo, que contemple não apenas a restrita moralidade dos dias atuais, sob os códigos contemporâneos de conduta, mas que compreenda que os valores morais são oriundos das contingências de cada sociedade, imanentes a ela. Para essas pessoas, nosso livro é um valioso registro histórico-literário, capaz de evidenciar que normatividade sexual provém tão só dos conceitos de cada povo".

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.