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“Não existe isso de acabar com a cracolândia", diz médico que atende usuários de crack há 15 anos

Rodrigo Casarin

27/06/2017 09h26

Foto: André Lucas/ Uol.

"Não existe este negócio de 'acabar com a cracolândia'".

É o que diz o médico psiquiatra Luís Marra, que há 15 anos lida com dependentes químicos, dentre eles muitos usuários de crack. "O lugar chamado cracolândia não é um lugar físico que pode ser acabado, demolido, a menos que se tomem medidas muito truculentas, absurdas, fascistóides e que vão inevitavelmente ferir os direitos de muita gente", argumenta.

Marra, 67 anos, também é escritor, autor de obras como "O Coletivo Aleatório" e "O Diário Perdido do Jardim Maia". Ele lança agora em julho "Crônicas do Crack", no qual reúne diversas histórias de usuários com as quais se deparou por conta de seu trabalho. São narrativas impactantes e perturbadoras, calcadas em situações reais, de onde surgem personagens como a prostituta que ganha R$6 para satisfazer cada cliente próximo a "rua dos noias", em São Miguel Paulista, ou o ex-membro do PCC que deixou o grupo por conta do vício na droga proibida pelo comando. "São histórias muito reais de tipos marginais que impressionam pela grandeza humana", explica Marra.

A obra, lançada pela Hedra, vem em boa hora, exatamente enquanto discussões públicas são travadas principalmente a respeito das ações de João Doria, prefeito paulistano, pelas ruas de São Paulo contra dependentes químicos. "Acho que houve muita demagogia e a intenção nítida de aparecer, uma vez que o grande público é muito sensível a medidas tidas como 'higienistas'", opina o escritor.

No papo a seguir, dentre outras coisas, Marra fala sobre internações compulsórias – "seria hipocrisia dizer que é sempre uma ofensa ao direito do dependente de optar pela liberdade" – e aponta os principais erros cometidos pelas pessoas ao lidarem com viciados.

Quais são os equívocos mais comuns das pessoas ao falarem sobre ou lidarem com usuários de crack?

Diria que são tantos os equívocos que, por vezes, se torna difícil elencá-los de forma sistemática. No entanto, creio que os equívocos mais fundamentais sejam os que dizem respeito à demonização do "vício" como sendo por toda a vida; a crença totalmente infundada de que se um indivíduo experimenta crack uma vez apenas fica dependente para sempre; a crença, também absurda, de que quase todos os usuários e/ou dependentes de crack morrem depois de um curto período de tempo, sejam lá seis meses ou até, pasmem, dois meses. Eu ainda acrescentaria um equívoco intimamente ligado ao preconceito mais vil que é achar que o usuário de crack fica tomado por algum tipo de "instinto homicida". Creio que sejam os principais, os que mais danos causam. Mas há muitos outros.

Como você vê a maneira que a gestão de João Doria tem lidado com o problema do crack em São Paulo? O que achou das ações na cracolândia?

Inicialmente, a gestão de Doria tinha uma proposta razoável para lidar com o problema. Seriam internações dentro do programa Redenção, com possibilidade de inserção dos usuários no mercado de trabalho. Em tese, não sou contra internações responsáveis e, muito menos, inserção de dependentes e/ou usuários em algum tipo de mercado de trabalho. No entanto, o que se verificou de fato foi uma tremenda deturpação disso, a partir do momento em que se tomaram medidas truculentas para acabar com a cracolândia, como se isso fosse fácil e viável a curto prazo.

Em primeiro lugar: não existe propriamente uma cracolândia como um local urbano/geográfico definido em São Paulo. O que existe é uma leva grande de usuários diversos, e não apenas de crack, que resolveram permanecer e transitar em determinados lugares da cidade. Muito bem. Estes lugares contam com moradores que nada têm a ver com os crackeiros e nem com os traficantes. Portanto, o lugar chamado cracolândia não é um lugar físico que pode ser acabado, demolido, a menos que se tomem medidas muito truculentas, absurdas, fascistóides e que vão inevitavelmente ferir os direitos de muita gente.

Então, diria que não existe este negócio de "acabar com a cracolândia". Acho que houve muita demagogia e a intenção nítida de aparecer, uma vez que o grande público é muito sensível a medidas tidas como "higienistas". Em resumo: a intenção de "acabar com a cracolândia" resultou apenas no esperado óbvio: a dispersão dos usuários para outras localizações. Sendo assim, creio eu que a maior parte dessas ações na tal cracolândia apenas contribuiu para uma dispersão de usuários diversos (como também de moradores de rua, dos pequenos traficantes, e de outros), não logrando obter algum objetivo que julgo adequado.

Luís Marra.

Qual é a sua posição sobre a internação compulsória?

Eu não sou contra a internação compulsória desde que haja critérios muito claros e definidos para isso. A internação compulsória apenas se justifica quando esgotadas outras possibilidades e/ou quando o adicto, estando gravemente tomado pela dependência química, oferece risco de vida a si próprio ou a terceiros. Embora seja muito, mas muito melhor internar dependentes voluntariamente, há casos e casos.

Seria hipocrisia dizer que uma internação compulsória é sempre uma ofensa ao direito do dependente de optar pela liberdade. Não há dúvida de que há casos em que este tipo de internação se justifica. Mas são casos raros. O que é absolutamente inaceitável é esta política higienista de querer recolher pessoas da tal cracolândia, aos montes, e interná-las involuntariamente. Além de demagógico, é contraproducente. A grande maioria deles sairá dessas internações bem pior e certamente voltará para o uso intenso da droga e, ainda mais, estarão movidos pelo rancor de terem sido tratados de maneira errada.

Você trata de dependências químicas há cerca de 15 anos, já tem alguma ideia de como resolver os problemas decorrentes do uso de drogas?

Bem, a princípio a pergunta abre demais o leque do problema e fica difícil dar uma resposta. Mas vou fazer algumas tentativas. Os tais "problemas do uso de drogas" não dizem respeito apenas à droga química e sim também aos rituais acoplados ao uso das drogas, às expectativas que as pessoas têm das drogas, e à visão que as outras pessoas que não usam e não conhecem as drogas e os drogados têm das drogas e dos drogados. Portanto, esse "como" é muito complexo e vai muito além de um olhar médico ou cientificista de achar que se trata apenas de uma "doença" e que, sendo doença, há que se encontrar os recursos terapêuticos. Vai também muito além de um discurso social direitista, por vezes moralizante, de acreditar que é possível existir um mundo sem drogas. E, finalmente, vai muito além de um outro discurso que, colocado no outro polo do discurso médico, é o discurso policialesco de "guerra às drogas", algo que já se provou ineficiente no mundo inteiro, mas ainda goza de bastante apoio popular.

Em resumo: tentar resolver os inúmeros problemas relacionados às drogas só passa a ser possível a partir de uma visão abrangente e não reducionista da droga adicção, a partir de uma compreensão do que venha a ser o uso de drogas (sagrado, profano e social) na história da humanidade, e a partir, enfim, de uma postura eclética que contemple as descobertas da ciência como também uma compreensão madura do que sejam as vivências dos drogados, independentemente de se tratarem de drogas legais ou ilegais. É claro que não existe uma fórmula para tudo isso. Não existe uma receita única para resolver este problema. Eu diria, parafraseando um amigo meu, "para todo problema complexo, só existem soluções complexas".

Nesta trajetória quais foram as histórias mais perturbadoras ou impactantes com as quais se deparou?

Não é fácil responder, tantas são as histórias impactantes e perturbadoras. E digo a você que algumas não impactaram apenas pelo lado negativo, não apenas pela miséria ou pela tragédia que pode acometer um adicto grave, mas também por ter eu encontrado pessoas que, não obstante serem drogadas, são pessoas com grandes qualidades. Mas vou responder à sua pergunta. Creio que duas das histórias mais impactantes e perturbadoras são as que estão nas duas primeiras crônicas do livro. São histórias muito reais de tipos marginais – um deles é homicida e o outro não tenho certeza se é -, mas são histórias impressionantes pela grandeza humana. Ambas me emocionam até hoje.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.