Novo livro de George Orwell mostra uma honestidade intelectual rara no Brasil de hoje
O inglês George Orwell tem se transformado em um autor cada vez mais importante para tentarmos compreender os dias de hoje. Apesar de ter morrido cedo, aos 46 anos, deixou uma produção admirável. Tratando do nazismo, do fascismo, do socialismo, do capitalismo e da Guerra Fria, dentre outros assuntos, seus escritos olham para o mundo no qual viveu, mas refletem também a nossa realidade. Desde a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos, a distopia "1984" passou, em muitos aspectos, a ser vista ainda mais como uma certeira premonição. "A Revolução dos Bichos", o outro grande clássico do escritor, permanece sendo uma alegoria importante – apesar de um tanto chatinha, convenhamos – sobre o totalitarismo, seu grande algo ao longo da vida.
Menos conhecidos do grande público do que esses romances, o trabalho não ficcional de Orwell também apresenta uma mina de preciosidades. Aqui no Brasil, a Companhia das Letras, que já tinha reunido diversos de seus ensaios em dois volumes, lança agora um novo título com textos publicados pelo jornalista entre 1938 e 1948.
Organizado por Sérgio Augusto, "O Que É o Fascismo e Outros Ensaios" reúne 24 peças inéditas em livro por aqui que vão desde resenhas até reflexões sobre a Europa daquela época. Seja falando de viagens pelo velho mundo, seja comentando livros de Joseph Conrad, Oscar Wilde, T. S. Eliot e Yevgeny Zamyatin, algo em comum permeia todos os escritos do volume (e praticamente toda a obra de Orwell): a interpretação política do mundo.
Um ponto essencial – principalmente para nós, brasileiros, nos dias de hoje –, é a independência intelectual demonstrada por Orwell. Ao longo de sua obra, o autor sempre se preocupou em mostrar como a desigualdade financeira descamba em vidas miseráveis para boa parte da população do planeta. Trabalhou como carvoeiro para escrever "O Caminho para Wigan Pier" e também chegou a viver como mendigo, experiência registrada em "Na Pior em Paris e Londres", isso só para ficarmos em dois exemplos.
Apesar de estar alinhado a muitas ideias consideradas de esquerda e que fazem parte do espectro do socialismo, sempre que possível Orwell procura expor as incoerências e hipocrisias de muitos políticos que dizem seguir o mesmo tipo de pensamento. Sua luta intelectual acontece primordialmente na própria trincheira. Em diversos momentos aponta que, independente da orientação política, mandatários quase sempre privilegiam quem já tem privilégios – prática ainda mais lamentável quando vinda de quem usa um discurso contrário a isso para angariar multidões e chegar ao poder. É como se ele olhasse para parte da esquerda e dissesse "olha, vocês estão fazendo o mesmo absurdo dos sistemas que tanto criticam".
"Num país próspero, sobretudo num país imperialista, as políticas de esquerda são sempre, em parte, uma tapeação. Não pode haver uma reconstrução real que não leve, ao menos temporariamente, a uma queda no padrão de vida inglês, o que é outro modo de dizer que, na maioria, os políticos e jornalistas de esquerda são pessoas que ganham a vida pedindo algo que na verdade não querem. São ardentes revolucionários enquanto tudo vai bem, mas cada real emergência revela instantaneamente que estão simulando. Uma ameaça ao Canal de Suez e descobre-se que o ''antifascismo'' e a 'defesa dos interesses britânicos' são idênticos", escreve, por exemplo, em "Sem Contar os Crioulos", ensaio de uma época na qual a Inglaterra ainda era o coração de um império ainda bastante vasto.
Sabemos que pessoas fazendo os absurdos que outrora criticavam nos é bastante familiar, o que anda faltando é quem olhe para seus supostos pares em termos ideológicos e escrache as inconsistências que apresentam. Também sabemos que, nesse sentido, é raríssimo encontrar alguém mais preocupado com a retidão e a consistência da própria casa do que em expor as rachaduras e goteiras da casa do vizinho. A honestidade intelectual de Orwell anda rara no Brasil de hoje.
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