Escritora, professora, doutoranda e ex-candidata a vereadora, ela se prostitui para pagar as contas
Amara Moira já fez programa por menos de R$10 e passou muito tempo precisando colecionar clientes em uma mesma noite para voltar para casa com algum dinheiro minimamente satisfatório. Travesti, atendia na rua, arriscando-se em matagais ou dentro de carros estacionados em vielas escuras. Quase nunca sabia com quem estava lidando e às vezes o que era para ser um momento de carinho pouco íntimo se transformava em uma cena de brutalidade. Teve com inúmeros homens de corpos que beiravam a perfeição, mas que pouco entendiam de sexo – e aí aprendeu que padrão de beleza vigente e prazer não são coisas que andam necessariamente juntas. Também cansou de presenciar machões que se permitiam tirar a máscara por alguns minutos para saciar suas fantasias com aquela prostitua que nascera homem, travestira-se e começara a transição de gênero em 2014, quando tinha 29 anos e já fazia o doutorado em Crítica Literária pela Unicamp, onde estudou o clássico "Ulysses", de James Joyce.
É essa história que Amara conta em "E Se Eu Fosse Puta", livro publicado pela Hoo Editora. Na obra a profissional do sexo elenca suas experiências com os mais diversos tipos de clientes, mostra suas sensações e descobertas ao vender seu corpo pelas ruas de cidades como São Paulo e Campinas e também faz um apanhado das pressões e hipocrisias sociais que vivenciou ao longo da vida.
"O livro só existe hoje por conta desses R$20 que eu vali um dia, que eu um dia aceitei", registra. "Antes puta, pelo menos me forço a escrever. Prefiro isso a ouvir desaforo oito horas por dia no telefone ou fazer unha e cabelo de madame com o rei na barriga […]. Difícil é transar por amor, amar por prazer. Meu medo era, antes, a violência da exclusão, me ver pária da noite pro dia, tratada feito lixo, perder família, amigos, círculo social, não ter um teto para chamar de meu, o direito de continuar estudando, de poder buscar emprego que não fosse esse que não consideram emprego: puta", continua.
Após a projeção que o livro lhe deu, a vida de Amara mudou. Passou a ser parada na rua por pessoas que a reconheciam e começou a receber mensagens elogiosas de diversos cantos do país. Além disso, finalmente se enxergou como escritora, algo com que sempre sonhou. "Acho que essa é a principal mudança: quando me assumi Amara, consegui voltar a escrever e, quando conheci a prostituição, encontrei os temas urgentes que a gente precisava explorar na literatura, romper com essa literatura que só sabe dar visibilidade para a perspectiva de homens cis brancos heterossexuais das classes dominantes. Pra que serve a literatura se, na prática, ela funciona como mais um mecanismo de perpetuação da sociedade que existe, dessa que me violenta?", diz ao blog.
Os compromissos com o lançamento da obra e a campanha para que tentasse se tornar vereadora de Campinas em 2016 (saiu pelo Psol e teve 1020 votos, insuficientes para elegê-la) fizeram com que Amara não se prostituísse por algum tempo, mas aos poucos ela tem voltado a atender homens – não tem fontes mais segura de renda e no Brasil não é possível viver de livros, argumenta.
O seu preço ao menos aumentou. "Com relação ao cachê, sim melhorou bastante, venho inclusive sendo chamada para dar palestras pagas sobre ele e essa tem sido uma das formas de eu me manter desde que a minha visibilidade fez com que clientes parassem de me procurar. Transfobia tem a ver com isso: cliente prefere mil vezes a travesti desconhecida, anônima, com quem ele não corre o risco de cruzar no shopping ou no bairro onde mora", explica.
Prostituta e professora ao mesmo tempo?
Prestes a concluir o doutorado, Amara se mostra um tanto frustrada com a universidade. "Tem sido uma luta continuar a acreditar na vida acadêmica quando sinto ela tão descompromissada com projetos de transformação social. Desde que me fiz militante, desde que descobri que, para ter direito a ser respeitada, eu teria que lutar por isso, entrei em crise com meu doutorado e só agora estou começando a conseguir ver caminhos dentro da academia que poderiam andar junto com os meus projetos".
O que pretende fazer depois que se formar doutora? Vê nos cursinhos populares a alternativa mais viável para lecionar. "É o único lugar onde uma travesti poderia dar aula, uma vez que é preciso coragem para um colégio bancar uma travesti em sala de aula e colégios não costumam se caracterizar por coragem". No entanto, ressalta que só poderia se comprometer com algo do tipo se o trabalho lhe permitisse pagar as contas e não descarta a ideia de se dividir entre as duas profissões: prostituta e professora. "Dois anos atrás eu conseguia como voluntária dar aulas no cursinho popular por, dentre outros motivos, garantir meu aqüé [dinheiro] nos programas. Então, se eu já fui as duas coisas ao mesmo tempo, não vejo motivo pra não poder voltar a ser".
E aqui há um eco do maior desejo de Amara ao publicar o livro, onde, já para as últimas páginas, escreve: "Afinal, quem explora quem quando a prostituição é exercida sem risco de violência, sem o peso do estigma, com pagamento justo? Fico imaginando o dia em que a palavra 'puta' não for mais xingamento, o dia em que as pessoas nem consigam mais imaginar porque um dia ela o teria sido. Mas esse dia está longe. Hoje, a única coisa que vemos é um feminismo que se diz radical andar de mãos dadas com a Pastoral da Mulher e a bancada evangélica na luta contra os direitos de profissionais do sexo. Hora de lutarmos por um feminismo que não deslegitime nossas pautas, que leve a sério a nossa luta, o putafeminismo quem sabe. Que esse livro ajude a inaugurar essa vertente".
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