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A “bofetada” de Chalámov no stalinismo: histórias de quase 20 anos de gulag

Rodrigo Casarin

27/12/2016 12h54

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Varlam Chalámov imprimia panfletos contrários a Stalin em uma gráfica clandestina de Moscou, em 1929, quando foi preso e condenado a três anos de trabalhos forçados em campos conhecidos como gulags na região de Víchera, nos montes Urais. Após a libertação, publicou "As Três Mortes do Doutor Austino", seu primeiro livro, em 1936. Ao mesmo tempo, continuou engajado em movimentos contrários aos líderes soviéticos, por isso, em 1937, foi novamente detido, desta vez sob a alegação de realizar "atividades trotskistas contrarrevolucionárias". Agora, no entanto, a pena era muito mais drástica: 15 anos de trabalhos forçados em diversos campos de Kolimá, região no extremo leste da Sibéria, onde as temperaturas frequentemente alcançam os 60 graus negativos.

Trabalhava cerca de 16 horas por dia em minas de ouro e carvão. Vivia frequentemente doente e subnutrido. Provavelmente só sobreviveu porque no final da década de 40 um médico permitiu que fizesse um curso de enfermagem e passasse a trabalhar nos hospitais que atendiam prisioneiros. A esperada liberdade chegou no dia 13 de outubro de 1951 e em 1953 regressou a Moscou, onde começou a colocar no papel as terríveis lembranças dos quase 20 anos que viveu como um preso político.

Campo em Kolimá. Foto: Tomasz Kizny/ Museum on Communism.

Campo em Kolimá. Foto: Tomasz Kizny/ Museum on Communism.

O trabalho, cujas mais de 2000 páginas levou outras duas décadas para concluir, seria chamado de "Contos de Kolimá" e se tornaria um dos mais importantes testemunhos da história da literatura, comparado a empreitadas de outros célebres "escritores sobreviventes", como o italiano Primo Levi, o espanhol Jorge Semprún e o também russo Aleksandr Soljenítsin. O próprio Chalámov que organizou esses seus escritos em seis volumes, que estão sendo trazidos para o Brasil pela Editora 34: o primeiro livro, "Contos de Kolimá", saiu ainda em 2015. Outros quatro volumes chegaram às livrarias este ano: "A Margem Esquerda", "O Artista da Pá", "Ensaios Sobre o Mundo do Crime" e a "A Ressurreição do Lariço". O último título, "A Luva, ou KR-2″, será lançado no primeiro semestre de 2017. A coleção é daquelas essenciais para qualquer pessoa com interesse em tentar entender a brutalidade e as barbáries que os homens cometem uns com os outros.

chalamovHomens que devoram cães

"Avesso a eufemismos e a qualquer tendência para suavizar um relato, seus contos autobiográficos são o polo extremo atingido pela assim chamada 'literatura do Gulag'. Realmente, depois da apresentação de um mundo em que alguém é capaz de devorar um cão ou arrebatar um leitão congelado e comer metade num acesso de loucura, não sobra espaço para nenhum tipo de ilusão", identifica Boris Schnaiderman, um dos principais tradutores de russo que temos no país, autor da apresentação do primeiro volume.

No mesmo título, no prefácio, Irina Sirotínskaia, amiga de Chalámov e detentora dos direitos de publicação de seus livros – ele morreu em 1982 -, faz o seguinte registro da série: "Desumana, horripilante é a verdade nos campos de Kolimá. Ainda mais horripilante é a verdade sobre o homem que se revela naquelas condições extremas. Com que facilidade o homem renuncia à sutil película da civilização, 'com que facilidade o homem se esquece de ser um homem'". E, em outro momento, comenta a importância contemporânea do registro. "Sim, é duro ler tudo o que está ali. Mas é necessário, visto que os campos de concentração não pertencem apenas ao passado".

Auschwitz soviético

Quem também escreveu sobre os "Contos de Kolimá" foi o jornalista italiano Roberto Saviano, autor de livros que denunciam a atuação do crime organizado pelo mundo. "Chalámov narra um inferno que os leitores não conhecem tão bem quanto o de Auschwitz. E do qual nem sequer suspeitam. Em torno das atrocidades do comunismo soviético dos gulags, o silêncio calou por muito tempo. Sua existência no imaginário de quase todos é nula", registra em texto que serve de introdução ao "A Margem Esquerda".

Para Saviano, mergulhar nos escritos do russo "é uma leitura que exige a força de continuar, página após página, uma escalada rumo à espoliação da alma. Uma dimensão universal. Um mergulho ao fundo da dimensão humana. Ao cúmulo do sofrimento, para além do sedimento da corrupção. Chalámov desenha o indivíduo absoluto. O ser desnudo em face da existência. É uma literatura que deixa ver o que é o homem, sua capacidade de resistir. A quarenta graus abaixo de zero, cercado por seres cujo único objetivo é tomar o seu pão e que a cada manhã esperam encontrá-lo morto para pegar suas roupas. Ali, o homem ainda pode tentar ser homem".

Alguns dos volumes publicados pela 34 também contam com textos de apoio assinados pelo próprio Chalámov. Em um deles, no qual reflete sobre seu trabalho de escritor, assume que cada um de seus contos "é uma bofetada no stalinismo". Em outro, elenca em 46 pontos o que viu e aprendeu nos campos de trabalhos forçados. São constatações como: "compreendi que se pode viver de crueldade", "compreendi o que é o poder e o que significa um homem armado" e "vi que, para um intelectual, uma simples bofetada pode ser um argumento de peso". E talvez aquela que melhor resuma sua empreitada: "O homem se torna bestial ao cabo de três semanas de trabalho duro, frio, fome e espancamento".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.