Fabio Alves: obra de Graciliano é “indissociável do pensamento de esquerda”
Em março de 1936 o escritor Graciliano Ramos foi preso em Maceió e depois enviado para cadeias do Recife e do Rio de Janeiro. Ficou quase um ano detido sem qualquer julgamento ou acusação formal. Como outros intelectuais da época, pagava por ter um pensamento à esquerda durante a ditadura de Getúlio Vargas. Dez anos depois, colocou no papel aquilo que viveu: "Memórias do Cárcere", publicado somente em 1953, logo após a morte do autor, é o relato incompleto (faltou o último capítulo) de Graciliano para o tempo que viveu atrás das grades e uma reflexão sobre o momento político que o país vivia.
Sobre esse importante livro de nossa história literária que Fabio Cesar Alves, doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, universidade onde leciona, debruçou-se para escrever o ensaio "Armas de Papel". No título, recém-lançado pela Editora 34, o estudioso analisa como Graciliano aborda boa parte da trajetória política da nação no século 20 por meio de suas memórias, que inclusive ajudam a entender o Brasil que temos hoje.
"Trata-se de um autor cuja obra é indissociável do pensamento de esquerda, fundamental para a compreensão da realidade brasileira, com todas as contradições e riscos que esse posicionamento implicava", diz o pesquisador na entrevista a seguir. "Se não levarmos isso em conta, incorreremos em uma danosa beatificação de sua figura", completa, mostrando a importância de sempre considerarmos o posicionamento ideológico do autor, que foi inclusive membro do Partido Comunista do Brasil (PCB), na hora de pensarmos sua obra.
Dentre as conexões entre aquele Brasil no qual Graciliano foi preso e o de hoje, Alves destaca a partidarização da política. "O memorialista percebe a parcialidade do judiciário brasileiro e o seu funcionamento farsesco em nome do interesse das classes dominantes". Além disso, afirma que o pensamento marxista que influenciou boa parte dos pensadores brasileiros no século 20 "é atuante, atual e está longe de ser um problema, a não ser para os paladinos da cartilha neoliberal".
Nesse momento de acirramento político, qual a importância de se entender como as ideias à esquerda impactaram na vida e na obra de um de nossos maiores escritores?
Ao contrário do que se imagina, Graciliano Ramos sempre esteve bem próximo da esquerda, e não somente depois da prisão, quando formalmente se filiou ao PCB, em 1945. Basta lembrar que seu primeiro contato com as ideias de Marx se deu ainda em 1914, em Alagoas; e que o cargo de prefeito de Palmeira dos Índios, por ele exercido no final dos anos 1920, possibilitou uma administração nitidamente progressista e até subversiva para os parâmetros da República Velha (além da própria atuação que contrariava as oligarquias locais, são célebres os relatórios de prestação de contas do prefeito ao governador Álvaro Paes). Como homem público, procurou sempre um lugar na luta política e colocou a serviço dela os seus conhecimentos. Portanto trata-se de um autor cuja obra é indissociável do pensamento de esquerda, pensamento esse fundamental para a compreensão da realidade brasileira, com todas as contradições e riscos aí implicados. Se não levarmos esse dado em conta, incorreremos em uma neutralização incompatível com a contundência de sua obra e a complexidade de sua trajetória. Ou pior: em nome das últimas teorias da moda, dissolveríamos as determinações históricas e específicas de sua produção na atualidade, sem qualquer espécie de diferenciação entre o contexto em que viveu Graciliano e os dias de hoje. Faria boa impressão nos meios acadêmicos, mas não levaria a lugar algum.
A seu ver, qual é o papel que "Memórias do Cárcere" ocupa ou desempenha dentro da obra do Graciliano?
As "Memórias do Cárcere" foram lançadas em 1953, logo após a morte de Graciliano, que faleceu quando faltava um capítulo para terminá-la. Elas são um testamento do escritor, que passa em revista a sua própria produção, mas, principalmente, uma proposta de interpretação do Brasil e de discussão das diretrizes do Partido em que o intelectual militava. Trata-se de uma narrativa que resgata não apenas a sua experiência como prisioneiro da ditadura de Vargas (as perseguições aos "elementos subversivos" e a escalada autoritária do governo já aconteciam desde 1935, portanto bem antes da decretação do Estado Novo), como também avalia, reformula e até rechaça, de forma muito consequente e sempre mais à esquerda do que o próprio PCB, diretrizes partidárias ortodoxas que quase nada tinham a ver com a realidade local. Por essas razões, o lugar desse livro na produção de Graciliano – e mesmo na literatura brasileira – é central.
No prefácio, Francisco Alambert fala de como o pensamento marxista permeou a cultura e a arte no Brasil do século 20. Essa característica se mantém hoje? Como você a avalia? Chega a ser um problema, como alguns atualmente apontam?
A pergunta é complexa, mas o pensamento marxista é atuante, atual e está longe de ser um problema, a não ser para os paladinos da cartilha neoliberal, que também estão vivíssimos. Se não há, por razões históricas, a presença maciça de uma produção intelectual e artística de esquerda que se proponha a pensar o Brasil como nos tempos de Graciliano, existem focos de resistência e de reflexão antidogmática no terreno das artes e do pensamento – e no âmbito mesmo da política não institucional – que procuram repensar e atualizar as categorias da esquerda clássica e responder à altura e à medida que a ofensiva do capital avança.
É possível traçar algum paralelo entre aquele Brasil no qual Graciliano foi preso e o de hoje?
As "Memórias do Cárcere" revelam impasses estruturais que ao longo de nossa história foram repostos e mesmo ampliados pelo desenvolvimento do capitalismo. Ao longo do relato, e é o que procuro demonstrar em "Armas de Papel", o memorialista percebe a parcialidade do judiciário brasileiro e o seu funcionamento farsesco em nome do interesse das classes dominantes; a exceção como regra de funcionamento do Estado; o discricionarismo de uma sociedade patriarcal e escravista que se revigorava em virtude da modernização; a perseguição histérica ao "perigo vermelho", mesmo quando não havia propriamente perigo.
Por ironia, o Brasil de 2016 se vê diante de questões semelhantes: até que ponto as nossas instituições são sólidas? O que está em jogo, de verdade, na destituição legal de uma presidente eleita? A que se presta a espetaculosa atuação de um Judiciário a quem só interessa investigar e punir um determinado espectro político? Como ainda sustentar a falácia da "democracia racial" e do caráter supostamente pacífico do brasileiro quando os trabalhadores, os pobres, as mulheres, os negros, os lgbtt e os militantes de esquerda são golpeados em seus direitos mais elementares e em plena luz do dia, além de espancados no sentido literal da palavra? Qual o papel da esquerda nesse cenário? Por aí se vê que as "Memórias do Cárcere" ainda têm muito a dizer, embora o quadro histórico de agora seja bem diverso daquele vivido pelo escritor-militante nos anos 1940-50.
A diferença, que depõe contra os dias atuais, é que Graciliano procurava entender e denunciar as contradições do modelo desenvolvimentista brasileiro quando o mundo do trabalho se organizava e havia no horizonte a expectativa de superação da ordem burguesa, enquanto nós vivemos o tórrido desmanche de um Estado de bem-estar social que sequer chegou a ser implementado na sua integralidade, em favor da financeirização da vida e da "gestão" de tudo, inclusive dos nossos corpos e sentimentos.
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