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Música e política: como Renato Russo e Cazuza explicam o Brasil recente

Rodrigo Casarin

12/07/2016 12h15

Renato

"Vamos celebrar a estupidez humana/ a estupidez de todas as nações/ o meu país com sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões". "Eu vejo o futuro repetir o passado/ eu vejo um museu de grandes novidades". Letras de músicas como "Perfeição", escrita por Renato Russo, e "O Tempo Não Para", de Cazuza, podem nos ajudar a entender o Brasil? Para Mario Luis Grangeia, sem dúvidas, tanto quanto os filmes do neorrealismo italiano ajudaram a explicar a Itália após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo.

Mestre em Sociologia, Política e Cultura pela PUC-Rio e doutorando pela UFRJ, em "Brasil: Cazuza, Renato Russo e a Transição Democrática", publicado pela Civilização Brasileira, o autor faz um ensaio no qual analisa letras, entrevistas e atitudes de dois dos maiores nomes do rock nacional para mostrar como esses artistas compuseram obras que, em partes, retratam o final da Ditadura Civil-Militar e o início de uma nova fase nacional de democracia.

cazuzaDessa forma, debruça-se sobre clássicos da música brasileira como "Índios", "Que País é Este", "Ideologia" e "Tempo Perdido", mas também analisa canções menos conhecidas do grande público, como "Sonho Estranho", de Cazuza, e "Metal Contra as Nuvens", de Renato, que, na entrevista abaixo, Mario aponta como uma das letras que mais lhe impressionam. É sobre ela que escreve no livro que as "quatro partes narram o descompasso entre um herói idealista e o mundo. O herói se envaidece de seus valores e sua terra, enquanto o mundo não parece fértil a seus ideais e o frustra com problemas como fome, corrupção e mentira".

No papo abaixo, Mario também fala da quantidade de "likes" que a cena de Cazuza cuspindo na bandeira do país (algo que ele fez em 1988) poderia ter hoje, de como as letras continuam atuais e de quem anda representando artisticamente o país nos dias de hoje. "Pelo que analisei, cinco temas sociais e políticos marcaram os repertórios deles: autoritarismo, patriotismo, ideologia, desigualdades e orientação sexual. Em cada um desses temas, muitas questões dos anos 80 e 90 continuam inquietando brasileiros de várias gerações nestes anos 2000 e 2010", constata.

Mario Luis Grangeia.

Mario Luis Grangeia.

Como surge a ideia de escrever o "Brasil"? Você era fã do Renato e do Cazuza e decidiu estudar as letras deles levando em conta o viés histórico? Ou nunca deu muita bola pros dois, mas reconheceu nas canções uma oportunidade para um bom estudo?
Desde adolescente eu era fã do Renato e da Legião e gostava do Cazuza, mas não na mesma intensidade. Em 2005, eu ia começar a cursar a especialização em Sociologia, política e Cultura na PUC-Rio e uma amiga me emprestou um livro sobre a Tropicália que devorei em duas noites (e madrugadas). Ao ler sobre a obra e a vida de Caetano, Gil e outros artistas, o que mais me interessou foi o entrelaçamento daquelas criações com a história do Brasil. E isso nem era o mais enfatizado no livro, mas foi o que mais me fazia pensar. Após essa leitura me veio o estalo de quanto essa articulação entre a cultura e a política era pouco pesquisada no período mais recente de nossa história.

Se pudesse resumir, como Renato e Cazuza nos ajudam a compreender o Brasil que temos hoje?
As letras e entrevistas de Cazuza e Renato Russo dizem muito sobre a sociedade e a política do Brasil de seu tempo e, como muitos traços delas persistem até hoje, as palavras deles não perderam sua atualidade. Pelo que analisei, cinco temas sociais e políticos marcaram os repertórios deles: autoritarismo, patriotismo, ideologia, desigualdades e orientação sexual. Em cada um desses temas, muitas questões dos anos 80 e 90 continuam inquietando brasileiros de várias gerações nestes anos 2000 e 2010. Se pegamos as leituras deles sobre patriotismo, por exemplo, eles exprimiram visões de um povo que ora exaltava sua pátria, ora a olhava com indignação.

Entre esses polos transitam versos como os de "Brasil", "O Brasil vai ensinar o mundo", "Que País é Este" e "O Descobrimento do Brasil". Mas, na conjuntura atual de crises no país, não é difícil imaginar que a cena de Cazuza cuspindo na bandeira no palco do Canecão em 1988 teria mais "likes" entre nós do que aquela em que ele se cobre com ela em êxtase no Rock in Rio de 1985, na noite em que Tancredo Neves era escolhido presidente em eleição indireta (é curioso até pensar agora na sobrevida de políticos dessa época, como Maluf e Sarney, e ver que reações que eles causavam em Cazuza e Renato não são muito diferentes das que eles provocam nas gerações mais novas). Não custa lembrar que Sarney foi alvo de uma CPI da Corrupção e de um pedido de impeachment resultante dela, que logo foi arquivado por Inocêncio de Oliveira. Talvez poucas coisas sejam tão atuais quanto aquela CPI mesmo após quase 30 anos.

No livro me parece que há mais letras do Renato do que de Cazuza. Podemos dizer que o líder da Legião foi mais politizado ou ao menos se manifestou mais politicamente do que o ex-vocal do Barão Vermelho?
Ele se manifestou sobre temas políticos desde o início da carreira, como vocalista do Aborto Elétrico, ao contrário do Cazuza, que só escreveu sobre eles na carreira solo (na sua fase Barão, as letras se concentram na vida afetiva, autoidentidade e outras questões íntimas). Cazuza avançou numa discussão cara ao Renato dos primeiros discos, até por uma influência admitida por ele mesmo, tanto que dá pra dizer que não haveria "Brasil" se não houvesse "Que País é Este". O curioso é que, nos últimos discos da Legião, o Renato está menos preocupado em problematizar a política e seus dramas e mais em dar ênfase à busca espiritual, família etc. (vide o disco "O Descobrimento do Brasil", onde "Perfeição" é uma exceção, e não a regra).

livro-brasilQuais são as letras deles que mais lhe impressionam? Por quê?
Do Cazuza, gosto muito do que ele chamou de sua "trilogia da esperança" ("Brasil", "Ideologia" e "O Tempo Não Para"), por trazerem críticas e desabafos muito originais e em sintonia com seu tempo, mas não só com ele (há versos ali que soariam atuais tanto antes de escritos quanto de lá pra cá). E destaco ainda "Um Trem para as Estrelas" (de versos como "Neste filme como extras/ Todos querem se dar bem"), que marca a guinada de Cazuza: do foco em questões íntimas para maior atenção à vida pública.

Do Renato, uma das minhas favoritas é "Andrea Doria" (vide epígrafe do último capítulo), sobre a desolação de um eu lírico jovem que quer mudar o mundo. Mas "Que País é Este" e "Perfeição" têm mais apelo – e, por isso, me impressionam muito –, por serem manifestos pulsantes e de conexão imediata com o público (e infelizmente muito atuais). E "Metal contra as nuvens" refletiu bem o desânimo do autor pós-plano Collor e pós-descoberta de ter o HIV.

Você acompanha o cenário musical atual? Nesse campo, quem está registrando hoje a nossa história?
Não creio que os cronistas do Brasil de hoje estão na música, a julgar pelo que as rádios tocam (talvez elas nem sejam o melhor termômetro, mas receio dizer que é o que mais uso apesar da profusão de novos artistas na internet). Acho até que as criações de maior valor documental estão online, em conteúdos como os vídeos do grupo Porta dos Fundos. É mero palpite, mas posso arriscar que alguns vídeos dizem mais de nossas questões sociais e políticas atuais do que as músicas (eu não me refiro às letras das décadas de 90 e 2000, como d'O Rappa e Nação Zumbi, que são poderosas com ou sem Marcelo Yuka ou Chico Science).

Nos agradecimentos você cita o Giuliano Manfredini, filho do Renato, herdeiro legal de sua obra e envolvido em uma grande celeuma com os outros legionários, mas não o Bonfá ou o Dado, que foram baterista e guitarrista da banda. Qual foi a força do Giuliano para a obra?
Sou grato ao Giuliano por ter autorizado a citação de versos do Renato, assim como à Lucinha Araújo por ter feito o mesmo em relação ao Cazuza. Não houve influência dele ou dela no texto, embora tenham tido acesso a ele antes para saber onde entrariam os versos com citação autorizada. É claro que não dá para dissociar as letras e melodias, mas, como meu foco eram as letras, era preciso ter o aval dos detentores desses direitos autorais. Em todo caso, por causa dos litígios entre o Giuliano e o Dado e o Bonfá, a editora tomou a iniciativa de sondar mais tarde os outros legionários e eles também avalizaram nosso projeto (uma força a mais, de um ponto de vista mais pessoal, veio da decisão de reverter meus ganhos à Sociedade Viva Cazuza, mas isso foi uma escolha minha como autor, e não uma contrapartida pedida pela Lucinha, só pra não deixar margem a dúvidas…).

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.