Livro de última Nobel sobre Tchernóbil é brutal, mas aquém do esperado
Uma tarefa é avaliar um livro, outra é avaliar o maior livro da última vencedora do Prêmio Nobel de Literatura. É importante ter essa distinção em mente para realizar a leitura crítica de "Vozes de Tchernóbil", da bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, que no final do ano passado recebeu a principal honraria literária "pelos seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e coragem em nosso tempo". O título é seu trabalho mais celebrado em todo o mundo, apontado como principal motivo de ter sido galardoada pela Academia Sueca e o de estreia da jornalista no Brasil (sai oficialmente pela Companhia das Letras no dia 26 deste mês, quando a tragédia nuclear que é tema da obra completa 30 anos).
Primeira escritora a levar o Nobel por conta de textos não ficcionais, em "Vozes de Tchernóbil" Svetlana se propôs, como o nome entrega, a ouvir e dar a palavra àqueles que vivenciaram e foram impactados pela tragédia. Dessa forma, passou quase vinte anos entrevistando pessoas comuns, trabalhadores que aturam no combate ao caos instalado após a fissura dos reatores nucleares, cientistas, camponeses, gente que logo perdeu sua família… O resultado é uma obra que traz relatos de centenas de sobreviventes que tiveram suas vidas radicalmente alteradas – sempre pra pior, sem exceção – após o desastre.
O que lemos nas 384 páginas impressiona. O relato inaugural tem força suficiente para levar leitores às lágrimas. Nele, a autora registra o depoimento de uma mulher cujo marido foi um dos primeiros profissionais a chegar no reator recém-abalado. Ao longo da narrativa, percebemos desde as inúmeras dúvidas iniciais a respeito do acidente até suas consequências mais trágicas. Com o marido já internado e não podendo ser tocado por conta da radiação que absorvera, a moça, grávida, não consegue resistir em lhe dar aquele que poderia ser o último beijo dos dois – praticamente um ato suicida, pois, com o ato, sua própria contaminação seria certa. Passa a viver o tempo todo no hospital, onde acompanha o seu amado minguar, esfacelar, inanir e, enfim, morrer. É brutal, como podemos ver neste trecho:
"O meu marido começou a mudar; cada dia eu via nele uma pessoa diferente… As queimaduras saíam para fora… Na boca, na língua, nas maçãs do rosto; de início eram pequenas chagas, depois iam crescendo. As mucosas caiam em camadas, como películas brancas. A cor do rosto, a cor do corpo… Azulada… Avermelhada… Cinza-escuro… E, no entanto, tudo nele era tão meu, tão querido! É impossível contar! Impossível escrever! E mesmo sobreviver… O que salvava era que tudo acontecia de maneira instantânea, de forma que não dava tempo de pensar, não dava tempo de chorar".
Nos outros relatos, mais horrores são elencados. O pai lamenta que a filha nasceu sem vulva e ânus e deseja que ela vire uma cobaia da ciência para, quem sabe, poder viver melhor, a professora fala de seus alunos pequenos que sempre conversam sobre a morte, alimentos viraram granadas radioativas, muitos se queixam da indiferença com os animais… O panorama que esses depoimentos transparecem não deixa dúvidas de que o horror é muito maior do que qualquer pessoa de fora daquele universo poderia supor, talvez até mesmo maior do que uma guerra. Para muitos, inclusive supera o que aconteceu após o atentado atômico dos Estados Unidos contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.
Sim, quanto ao conteúdo, "Vozes de Tchernóbil" é tristíssimo e, ao mesmo tempo, maravilhoso, justamente por nos mostrar com riqueza de detalhes e, acima de tudo, com uma humanização primorosa as tragédias – a macro, o acidente na indústria, e as micros, as consequências para cada um – da região.
No entanto, Svetlana pecou na hora de escolher o formato que esses relatos seriam expostos na obra. Opta por uma enorme série de monólogos (há um coro aqui e outro ali, quando mais de um personagem fala ao mesmo tempo), o que se por um lado é perfeito para realmente dar voz àqueles que ela ouviu, por outro se mostra uma solução jornalisticamente satisfatória – principalmente pela maestria da edição -, mas artisticamente pobre, deixando a estrutura do livro um tanto monótona. Uma narrativa única que desse conta de registrar todos os descalabros apresentados seria uma opção mais requintada, sem dúvidas.
Isso não diminui o trabalho da repórter, mas acaba por colocar em xeque os motivos por ter sido eleita a Nobel de Literatura de 2015. Será que as razões foram mais uma vez políticas e/ou humanitárias, não essencialmente artísticas? Pelo visto, sim. Para ficarmos apenas no campo da não ficção, outros jornalistas que costumavam ser apontados como candidatos ao prêmio já apresentaram trabalhos importantes e mais elaborados do que esse de Svetlana, como o polonês Ryszard Kapuscinski, que morreu em 2007.
Em suma, "Vozes de Tchernóbil" é um ótimo livro, mas, a julgar apenas por esse trabalho, o ótimo não é suficiente para se justificar um Nobel de Literatura para Svetlana Aleksiévitch.
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