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Caos na escola: Japão do começo do século 20 ou o Brasil atual?

Rodrigo Casarin

15/03/2016 11h11

merenda

Alunos desinteressados, casos de indisciplina, professores impotentes, desiludidos com a profissão que escolheram e acachapados por um sistema questionável. Estrutura parca, consequência de um sistema corrupto, que impacta inclusive na alimentação de mestres e estudantes, que recebem uma comida insatisfatória demais para que tenham mínimas condições para ensinar ou aprender. Não há dúvidas que esse quadro é uma reprodução fiel do ensino público brasileiro atualmente. Mas surpreende que também seja bastante semelhante a escolas do Japão – país reconhecido nos dias de hoje, dentre outras coisas, justamente pela qualidade da educação – no início do século 20.

botchanÉ o que mostra o romance "Botchan", de Natsume Soseki, recém-lançado por aqui pela Estação Liberdade. Publicado em 1906, na obra o autor japonês usa o humor para construir a história de Botchan, um jovem que acaba de se formar em matemática e deixa Tóquio para viver e iniciar sua vida de professor ginasial na afastada e reclusa ilha de Shikoku.

Ao 23 anos, o protagonista está longe de ser uma pessoa carismática. Impaciente, ríspido e sem travas na língua, tem dificuldades em levar uma vida social razoável. Logo em suas primeiras aulas os alunos percebem essas características de Botchan e passam a lhe ter como alvo de ataques. Acompanham-no pelas ruas para notar seus hábitos e depois fazerem chacotas, descobrem onde dorme para encher sua cama de gafanhotos antes dele deitar. Quando o professor tenta dialogar com os adolescentes, precisa lidar com um cinismo que deixa até o próprio leitor com raiva.

Não bastasse, Botchan ainda tem dificuldade em aceitar as regras e costumes já estabelecidos do lugar onde trabalha. Indigna-se, por exemplo, com professores que ganham mais do que ele mas não precisam cumprir plantões noturnos por possuírem títulos burocráticos. "Que repulsivo. É injusto receber um salário alto, trabalhar pouco e ainda por cima ser dispensado do plantão noturno. Essa regra foi criada para a conveniência deles, e aparentemente exibiam o semblante de quem julga isso tudo muito natural. Como conseguem ser tão descarados? É de extrema injustiça, mas, segundo a explicação do Porco-espinho, por mais que uma única pessoa proteste contra uma injustiça, ela não será ouvida", queixa-se o personagem, que em seguida constata. "O direito está na mão dos poderosos". Familiar, não?

Em outro momento a reclamação é sobre a comida servida na escola. "Terminei o jantar que me trouxeram, o mesmo distribuído aos alunos, e me espantei com o gosto horrível. Como os rapazes poderiam se mostrar tão enérgicos comendo uma gororoba detestável como aquela?". Impossível não notar a semelhança entre aquela "gororoba" servida no Japão do começo do século passado e as bolachas de água e sal oferecidas aos alunos dos colégios estaduais de São Paulo, vítimas dos absurdos desvios feitos pela "Máfia da merenda".

natsumeToda a situação faz com que o professor olhe para seus antepassados – descende do samurai Manju Tada – para constatar: "Nasci em berço diferente do desses caipiras. Apenas me entristece essa minha falta de inteligênci
a. Somente me embaraça não saber como agir". Sim, o personagem também tem um caráter bastante questionável, o que só deixa "Botchan" ainda mais interessante.

Soseki, o autor, nasceu em 1867, em Tóquio, e se tornou uma dos maiores escritores japoneses da sua época, normalmente elogiado pela maneira que soube trabalhar o momento no qual o Japão começava a ser influenciado por costumes ocidentais. Estreou na literatura em 1905 com "O Gato", sucedido justamente de "Botchan", até hoje uma obra bastante popular no país. Depois vieram títulos como "Sanshiro", "O Portal" e "E Depois". Morreu em 1916, acometido por sequelas de suas habituais crises de úlcera.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.