Topo

Usuários de drogas viram zumbis e dançam Michael Jackson na Cidade de Deus

Rodrigo Casarin

02/03/2016 15h53

julio pecly

Por conta de decisões dos grandes chefes do tráfico, a Cidade de Deus é uma das únicas favelas que ainda vende crack no Rio de Janeiro. Quando uma nova carga da droga chega da Colômbia, os vendedores da pedra estranham a cor diferente que a safra apresenta, mas ainda assim comercializam o produto. No entanto, a substância provoca um efeito colateral nunca antes visto: os usuários instantaneamente viram zumbis.

Como o lugar é um dos raros cantos onde os dependentes ainda podem encontrar a droga, não demora para que a comunidade esteja tomada pelas monstruosas criaturas. Por ordem da Secretaria da Segurança Pública, a polícia cerca a favela para garantir que ninguém entre ou saia dela. Lá dentro, os moradores precisam se virar para não serem mortos pelos zumbis literalmente loucos de pedra.

cidade de deus zÉ esse o enredo do livro "Cidade de Deus Z", de Julio Pecly, que nasceu em Madureira, morou Cidade de Deus e atuou como roteirista (integrou a equipe de criação de "Malhação – Conectados", da Rede Globo) e diretor de cinema, assinando filmes como "Enchente" e "Sete Minutos". O artista, que sofria de distrofia muscular, faleceu no começo do ano passado, aos 40 anos, vítima de uma parada cardiorrespiratória.

No livro, Pecly se apoia na trama fantástica para construir uma representação de problemas que são caros à realidade não apenas do Rio de Janeiro atual, mas de todo o país. Na história, a droga só chega até os traficantes porque a polícia a revende após uma apreensão. O secretário de segurança, por sua vez, ao saber do problema, manda garantir que os monstros não deixem a favela – teme que cheguem à parte "nobre" da cidade – e autoriza que PMs matem quem lhes cruzar o caminho, sejam zumbis ou não, apenas pede para que tenham o cuidado de ocultar os cadáveres.

As supostas pacificações pelas quais diversas comunidades vêm passando desde antes da Copa do Mundo no Brasil também é criticada na narrativa, como no seguinte diálogo entre um ingênuo morador da Cidade de Deus e o líder do tráfico local:

"- Espera aí, quer dizer que essas invasões todas, antes de acontecer, eles conversam com os traficantes e ainda dão dinheiro em troca? Quer dizer que eles compram a favela da mão dos bandidos?
– Não acontece um tiroteio de dias por quê? Você acha que a Rocinha não aguentaria vários dias de troca de tiros com a polícia? É por isso que as pacificações estão dando certo. Quero ver depois das Olimpíadas".

No entanto, se a obra acerta em transformar o que poderia ser somente mais um livro de zumbis em uma trama social e política que tem inclusive bons momentos de humor – em determinada passagem os dependentes químicos mutantes chegam até a fazer a coreografia do videoclipe da música "Thriller", de Michael Jackson -, é de se lamentar que também apresente alguns equívocos primários. A prosa de Pecly soa tão artificial que se aproxima de redações escolares, os diálogos não funcionam bem – como podemos ver acima, inclusive – e os personagens são bastante rasos. "Cidade de Deus Z", publicado pela Leya em parceria com a Flupp (Festa Literária das Periferias), também merecia revisão e edição mais atentas.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.