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Filósofo defende “coisas inúteis”, como a arte, para superar a crise

Rodrigo Casarin

17/02/2016 16h39

Nuccio

"Um interesse exclusivamente econômico está progressivamente matando a memória do passado, as disciplinas humanísticas, as línguas clássicas, a educação, a livre pesquisa, a fantasia, a arte, o pensamento crítico e o horizonte civil que deveria inspirar toda atividade humana. No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte".

AUtilidadeDoInutilÉ o que alerta o italiano Nuccio Ordine, filósofo e professor de literatura que leciona na Universidade de Calábria e também como professor convidado em instituições dos Estados Unidos e de outros países da Europa, no livro "A Utilidade do Inútil", que acaba de sair no Brasil pela Zahar.

No volume, Ordine coloca o utilitarismo em cheque e defende que abrir mão do que não tem nenhuma utilidade aparente e imediata – como as artes – pode colocar em risco não só a cultura, mas também a criatividade e a própria condição de humanidade. Em uma época como a que o Brasil vive, com a crise impactando drasticamente nos orçamentos de Ministérios como o de Educação e Cultura, é importante que o pensamento do filósofo tenha destaque.

"É nas dobras daquelas atividades consideradas supérfluas que, de fato, podemos encontrar o estímulo para pensar um mundo melhor, para cultivar a utopia de poder atenuar, se não eliminar, as injustiças que se propagam e as desigualdades que pesam (ou deveriam pesar) como uma pedra em nossa consciência. Especialmente nos momentos de crise econômica, quando as tentações do utilitarismo e do egoísmo mais sinistro parecem ser a única estrela e a única tábua de salvação, é preciso compreender que exatamente aquelas atividades que não servem para nada podem nos ajudar a escapar da prisão, a salvar-nos da asfixia, a transformar uma vida superficial, uma não vida, numa vida fluida e dinâmica, numa vida orientada pela curiositas em relação ao espírito e às coisas humanas", escreve.

O livro apresenta comentários e inferências do autor a partir de citações e pensamentos de grandes escritores e pensadores que cunharam memoráveis obras "inúteis", como Gabriel García Márquez e seu "Cem Anos de Solidão", David Foster Wallace e seu "Isso é Água", Dante Alighieri e sua "Divina Comédia", Miguel de Cervantes e seu "Dom Quixote" e Platão e seu "O Banquete".

Discurso contra a ignorância

O volume é dividido em três partes. Na primeira, Ordine mostra e reflete sobre referências ao inútil na literatura. Em seguida, fala a respeito de como a lógica do lucro pode trazer consequências desastrosas à educação, às pesquisas e à cultura. Por fim, apoia-se em clássicos literários para dizer como o desejo pela posse das coisas pode ser devastador para o amor, a verdade e a dignidade humana. A obra ainda conta com um ensaio do educador norte-americano Abraham Flexner sobre como as ciências exatas comprovam a utilidade do inútil, texto que até então era inédito em português.

Em certo momento, o professor italiano lembra, inclusive, que grandes nomes da ciência, como Galileu Galilei e Isaac Newton, "cultivaram sua curiosidade sem estar obcecados pelo útil e pelo lucro". Ou seja, suas pesquisas que revolucionaram o mundo no qual vivemos não tinham como ponto de partida uma meta utilitarista. São exemplos que dão força para opiniões como essa:

"Há saberes que têm um fim em si mesmos e que – exatamente graças à sua natureza gratuita e livre de interesses, distante de qualquer vínculo prático comercial – podem desempenhar um papel fundamental no cultivo do espírito e no crescimento civil e cultural da humanidade […]. Claro que com muita frequência museus e sítios arqueológicos também podem ser fontes de receitas extraordinárias. Mas a sua existência, contrariamente ao que alguns gostariam de no fazer crer, não pode estar subordinada ao sucesso das bilheterias: a vida de um museu ou de uma escavação arqueológica, assim como a vida de um arquivo ou de uma biblioteca, é um tesouro que a coletividade deve preservar ciosamente, a todo custo".

Voltando aos tempos de crise, Ordine resgata em "A Utilidade do Inútil" um discurso proferido em 1848 pelo escritor Victor Hugo na Assembleia Constituinte da França, que vivia um conturbado momento político e econômico. Nele o autor diz: "Qual é o perigo da situação atual? A ignorância. A ignorância, muito mais que a miséria… É num momento semelhante, diante de um perigo como esse, que se pensa em atacar, em mutilar, em sucatear todas as instituições que têm como objetivo específico perseguir, combater e destruir a ignorância!".

Com base nessas palavras do criador de "Os Miseráveis", o filósofo defende que "exatamente quando uma crise sufoca uma nação, é necessário duplicar os recursos destinados ao saber e à formação dos jovens", justamente para se evitar que a sociedade caia no tenebroso abismo apontado por Victor Hugo, uma ameaça que nos amedronta – ou deveria nos amedrontar – nesses dias que estamos vivendo.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.