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Clássico de Truman Capote faz 50 anos ocupando lugar que não lhe pertence

Rodrigo Casarin

20/01/2016 15h11

Capote

Há 50 anos chegava às livrarias dos Estados Unidos "A Sangue Frio", livro de Truman Capote publicado pela Random House. Nele, o jornalista e escritor retrata o brutal assassinato de quatro membros (pai, mãe e dois filhos) de uma família em Holcomb, pequena cidade do Kansas, que acontecera em novembro de 1959. Richard Hickock e Perry Smith, os ladrões, amarraram as vítimas antes de matá-las com tiros de espingarda. Da casa, além de alguns objetos, levaram consigo pouco menos de US$50. Após o crime, foram perseguidos pelas autoridades locais, presos, condenados à morte e enforcados em abril de 1965.

Capote chegou à cidade um mês depois do crime. Sua ideia era conversar com o maior número possível de pessoas envolvidas no caso e coletar dados suficientes para escrever uma grande reportagem na qual usaria todo o requinte das narrativas ficcionais. Concluiu a obra mais de cinco anos depois, quando os criminosos foram enforcados. Conseguiu muito com isso.

Graças a "A Sangue Frio" que Capote, falecido em 1984, passou a ser encarado como um dos principais escritores dos Estados Unidos e, em seguida, um dos maiores nomes das letras inglesas do século 20. É também autor de títulos como "Bonequinha de Luxo" e o inacabado "Súplicas Atendidas", mas o livro que se tornaria um clássico do jornalismo literário e um dos principais representantes do chamado New Journalism (fase de ouro das narrativas de não ficção) permanece sendo o seu trabalho de maior relevância, sua obra-prima.

No entanto, em que pese toda sua qualidade, criou-se o mito – fomentado pelo próprio Capote – de que "A Sangue Frio" inaugurava um novo gênero, que nunca antes alguém havia explorado o jornalismo daquela forma: utilizando as técnicas de narrativa normalmente vistas na ficção para retratar um caso real. É mentira. Muito já havia sido feito nesse sentido.

Nos Estados Unidos mesmo, John Hersey publicou em 1946, na "The New Yorker", a formidável "Hiroshima", longa reportagem, depois lançada em livro, que reconstitui como foi a vida dos japoneses na cidade após os estadunidenses despejaram bombas atômicas em suas cabeças, em 1945. Também na década de 40, Joseph Mitchell já utilizava tais recursos na hora de escrever longos perfis. E pouco antes de "A Sangue Frio", em 1964, Gay Talese, outra referência do New Journalism, lançou "A Ponte", ótimo exemplo de narrativa de não ficção.

Além disso, jornalisticamente falando, alguns aspectos do livro de Capote são bastante questionáveis. O autor não teria se limitado a utilizar técnicas da ficção na hora de construir a narrativa, mas também romanceado – ou inventado situações e elementos, para ficar claro – alguns trechos, o que é eticamente deplorável na profissão. Não bastasse, há indícios de que teve um relacionamento amoroso com Perry Smith, que, na obra, acaba sendo pintado como um bandido "mais bonzinho" do que Hickock, seu parceiro. Impossível não desconfiarmos que Capote o teria representado dessa maneira por conta dos sentimentos que nutria pelo personagem.

Mas essas são questões do jornalismo, não da literatura. E "A Sangue Frio" é, indiscutivelmente, uma grande obra literária. Sua relevância estética que faz com que, 50 anos depois de seu lançamento, esteja sendo lembrada por jornais, revistas, sites e blogs em todo o mundo.

E extrapolou aquilo que foi escrito por Capote, aliás. Nos cinemas, recebeu duas adaptações, uma em 1967 e outra em 2005, com Philip Seymor Hoffman interpretando magistralmente o jornalista. Virou também história em quadrinho pelas mãos de Ande Parks e Chris Samnee: "Capote no Kansas", que saiu no Brasil pela Devir.

Em suma, continua sendo notável o trabalho que Capote fez a partir de um crime bárbaro. Um primor literário, sem dúvidas, que se desdobrou em outras representações artísticas. Porém, também uma obra problemática jornalisticamente falando e muitas vezes colocada em um lugar que não lhe pertence na história da não ficção.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.