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“Em Busca da Astorga Perdida” - conto inédito de Marcos Peres

Rodrigo Casarin

01/01/2016 08h00

Marcos Peres

Marcos Peres_que fimNesta semana o Página Cinco abre espaço para alguns autores que publicaram bons livros em 2015 mostrarem um pouco mais de seu trabalho por meio de textos até então inéditos. Marcos Peres lançou "Quem Fim Levou Juliana Klein?", no qual cria uma trama policial que se passa em universidades e tem como plano de fundo os pensamentos de Friedrich Nietzsche. Agora, Peres nos disponibiliza o conto "Em Busca da Astorga Perdida", inspirado em Astorga, cidade de 30 mil habitantes do norte do Paraná onde o autor viveu até os 13 anos e cujos filhos mais ilustres são Chitãozinho & Xororó.

"Em Busca da Astorga Perdida"

Astorga, domingo, depois da missa matinal na Paróquia, a família no sítio do Nono. Domingo, sempre o dia preferido, apesar das tias matronas e das maldades dos primos mais velhos. Dia de bola descalço e banho de mangueira, pra, por fim, limpar a terra vermelha e o molho de manjericão da Nona.

Temporão, eu, Durval do Reis Junior, Juninho para a família, tinha apenas Sandiléia, prima, ano e meio mais nova, dos tempos em que tempo se contava por meses, e que os segundos transformavam o mundo. "Vamos visitar um amigo de família", disse a mãe, isso foi logo depois que me espinafrei com a menina: mania idiota de vir pro Nono de vestido. Como subir em árvore? E o futebol?

Kombi, branca, antiga, brasão de família, apesar de não comportá-la. "Como não?", desafiado o patriarca Nono: "Só apertar. Amontoa as crianças atrás". As crianças, eu e Sandiléia, sentamos num espaço-pra-um-só, meio embolados, eu primeiro, ela por cima, desajeitada, pesada, apesar de miúda. E, sentados, éramos um só, unidos por um &, como o daqueles homens cabeludos que cantavam, na mesma toada, as músicas tristes das rádios. O Nono deu a partida, a Kombi atravessando o caminho de terra vermelha, chiado de estática & fio de cabelo, do Chitãozinho & Xororó. Num primeiro solavanco, o corpo da prima foi arremessado pra trás, a cabeça bateu contra a minha. No segundo buraco, ralhei: "porque tão mole?", eu vendo o vermelhão sair do chão e esfumaçar o mundo. No terceiro solavanco, num buraco mais forte, Sandiléia se acomodou ao meu corpo, como copo de gelo depois que se derruba Coca-Cola, os espaços com ar se amoldando ao líquido e à espuma esbranquiçada, o gelo cedente, funcional, de curta duração. Nos buracos pedregosos, na risada rascante dos tios, aos poucos, aos poucos, uma comichão, um sinal novo, um alerta – nunca antes dado – que vinha da cabeça, apertava o peito, descia às coxas e abrasava a barriga, da estática à extática, de repente totalmente esquecido da busca ao Domingo perdido. Que diabos era aquilo? Os pais riam, o Nono gritava. Sentiam, sob o sacolejar da Kombi, aquele negócio também? Um buraco maior, a menina se contorceu e achei que fosse cair; firmei meus braços em sua cintura miúda, estabilizando-a. Foi neste momento que me intumesci, sem avisos prévios, apontando e cutucando pra cima, pro lado que estava Sandiléia. Brasão de família, também este, agora? Ela se virou e sorriu – agradecida de meu apoio ou irônica daquilo que a machucava? Não mais estradas irregulares, nem solavancos; se tiveram, foram sincronizados com um remexer que tinha como epicentro o pequeno corpo de prima, no espaço-pra-um-só, no corpo único que formamos naquele curto trajeto, ligados por um &, entre risos, sob o vestido, pela erupção que irrompia & rompia nossas peles. Se Capitu não traiu, Machadinho se chamou José de Alencar. Machadinho & Alencar, a cantarem sobre Capitus & Lucíolas, aliás, minhas primas. Se Sandiléia sabia, nunca saberei. Em sua saia de chita, o tecido lentamente se rendia ao corpo, empurrada por um corpo estranho, reteso como pau de marmelo, apontado pra Aldebaran, estrela maior da constelação de touro – as constelações dos céus das bocas daqueles poetas todos, da Grandessíssima Academia de Letras de Astorga.

É disso que diziam todos eles, cornudos imortais, em seus chás, apadrinhados por Chitõezinhos & Xororós? É isso que fazem os poetas? Beletrismo com gelo, ergástulo dos condenados & inocentes, solecismo das lembranças tristes? É isso, afinal, a literatura? Todos como eu: putos covardes, de uma puta vida, presos por uma puta dúvida:

Sabia Sandileia?

O que vivi naquele domingo foi o auge de minha vida e, como sabem, após é só declínio. Se antecipo a queda antes do ápice, é por não poder lembrá-lo com inteireza: por ser como gelo, funcional e de pouca-vida. O fim da velha música sertaneja, um gemido abafado, obliterado pelos gritos dos velhos; apertei forte o braço esquerdo da prima e, em outras ocasiões, ela gritaria, eu sei que apertei forte. Sandiléia apenas se virou com calma, um cínico sorriso: "pesada, Juninho?", o canto do canto da boca arqueado, sutil demais para o resto do mundo, séculos de leitores coaxando: foi isso!, foi aquilo?

Sabia, Sandiléia?

Quando a porta se abriu, o mundo, enfim criado, se desfez. Sandiléia, em átimos, refeita inocente: "Que é essa mancha no meio das pernas, Juninho?" Respondi melancólico: "Leite que tomei no sítio". Ela se contentou com a resposta; eu nunca, com a vida.

Se sabia, porque não contestou, ali, de pronto? "Como leite? Estive contigo, não tomou! Estava ralhando com meu vestido ainda agora". Sandiléia foi pra Maringá, cursinho, depois medicina na capital, lá conheceu um polaco de olhos claros e fala nojentinha, lei-tê-quên-tê, vina, gasosa, coxa branca, carro do ano, cartão sem limites, viagens pra ilhas gregas… que importa uma vida de reis com sotaque curitibano?

Eu… bom… eu procurei aquela viagem de Kombi em todo o mundo: na Augusta pedi pra jovenzinhas hipsters com camisas do Arctic Monkeys me chamarem de primo. Em bordeis de Barcelona, paguei mais caro para possuí-las em movimento, em partes esburacadas na Calle Montcada. Em Roma, pedi pra que tivéssemos plateia, ruidosa, como a dos tios. Como um viciado em cocaína, busquei, sem sucesso, voltar à primeira vez, com doses e perigos cada vez maiores, todas sem sucesso. A história do mundo é a história de poucos minutos – entre o sítio do Nono e a casa de amigos de família, em uma Kombi lotada. O resto é simulacro, prolixo, tautológico. A história das civilizações, de reis, Édipos e Odisseias é a viagem sem volta, no sacolejar da terra vermelha do norte do Paraná, com risos e gritos; é a história da erupção primeira sob o pequeno corpo de Sandiléia.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.