“Gran Cavallo” - texto inédito de Julián Fuks

Nesta semana o Página Cinco abre espaço para alguns autores que publicaram bons livros em 2015 mostrarem um pouco mais de seu trabalho por meio de textos até então inéditos. Julián Fuks lançou "A Resistência", no qual o narrador repassa sua história marcada pela violência da ditadura argentina, que alterou profundamente as estruturas de sua família. Agora, Fuks apresenta pela primeira vez em português uma espécie de reflexão que escreveu baseado em um retrato seu feito pela artista plástica sul-africana Pauline Gutter, para uma exposição inspirada no "Gran Cavallo", escultura de Leonardo da Vinci.

"Gran Cavallo"

Que força tem o incompleto, o inacabado, o inexistente. Que apelo sobre os que se querem íntegros, os que se querem plenos. Às vezes olho meu rosto no espelho e um ímpeto me impele à frente, uma vertigem me consome o pensamento. Colo meu rosto no espelho, chego tão perto que meu rosto se despedaça, minha face se esfacela. Minha pele se faz um campo de batalha de fissuras infinitas, incontáveis talhos abertos pelos soldados minúsculos do tempo. Meus olhos são dois lagos de água inerte para onde nunca acaba de escorrer algum sangue, sangue de que feridas, de quais guerreiros? Meu nariz, eu vejo, é a ponta dianteira da cavalaria: meu nariz é equestre. Penso no Gran Cavallo de Leonardo, na estátua imensa destruída por soldados franceses, penso em sua Gran Ausência. Por um instante me ausento de mim, como a do cavalo minha existência se faz incerta, minha imagem vacila sob a luz forte e certeira. Às vezes tenho que me afastar para que meu rosto não se destrua por completo, para retornar ao mundo das coisas certas, para esquecer a precariedade em que existo, a precariedade em que estamos todos imersos.