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“Oficina Literária no Balcão do McDonald's” - Crônica de Henrique Rodrigues

Rodrigo Casarin

29/12/2015 08h00

Henrique Rodrigues

Henrique Rodrigues_proximoNesta semana o Página Cinco abre espaço para alguns autores que publicaram bons livros em 2015 mostrarem um pouco mais de seu trabalho por meio de textos até então inéditos. Henrique Rodrigues lançou "O Próximo da Fila", romance de formação sobre um garoto que precisa começar a trabalhar para ajudar em casa e encontra seu primeiro emprego em uma rede de lanchonetes. Agora, na crônica "Oficina Literária no Balcão do McDonald's", Rodrigues repassa o seu ano e mostra como a experiência que teve como balconista de uma loja de fast foods se cruza com suas experiências literárias. Confira:

"Oficina literária no balcão do McDonald´s"

Por esses dias, participei de um bate-papo sobre poesia com duas jovens poetas. Na hora das perguntas, uma senhora da plateia argumentou que o verso livre não pegou, pois no seu tempo decoravam-se os poemas de Castro Alves, Augusto dos Anjos e quetais, e isso seria mais difícil com a poesia não metrificada. Imediatamente me veio na cuca a etimologia do termo decorar, que é guardar no coração. Perguntei o nome da senhora: Nêmesis. Pelo que me lembro das aulas de cultura clássica, era a deusa da vingança e da justiça. Implacável.

Ouvindo a assertiva poética da D. Nêmesis, imediatamente me transportei para o início da década de 1990, quando trabalhava no McDonald´s. Como todo adolescente tímido, pobre e feio (hoje sou menos os dois primeiros, e só), era uma dificuldade chegar nas meninas por quem me apaixonava para sempre durante uma semana. Na escola, era bom em redação e tinha certa facilidade em memorizar regras, fórmulas, macetes e, claro, frases e versos. Daí que, como gostasse de poesia também, comecei a decorar sonetos de poetas como Vinicius de Moraes, Drummond, Bandeira e Álvares de Azevedo. Alguém tinha me dado uma edição antiga do livro "Teoria literária", do Hênio Tavares, calhamaço que eu gostava de ler sem compromisso. E então, quando podia abordar as garotas, logo me oferecia para escrever, ali na hora, um poema para elas. Pegava um papel e, meio Chico Xavier, tascava rapidamente decassílabos como "De tudo, ao meu amor serei atento" e ia embora.

Ainda que a taxa de sucesso nessa estratégia de conquista não fosse maior que 10%, com o tempo essas leituras me deram uma percepção poética boa, de modo que, quando comecei a estudar poesia mais a sério, já tinha dominado tecnicamente boa parte das temidas formas fixas. Por isso acho, até hoje, que escrever versos brancos é bem mais difícil.

Essa volta à adolescência para tentar entender mais um pouco do que tento escrever hoje não vem desacompanhada de uma perspectiva de compreensão de mundo. Neste meado de dezembro, quando geralmente se faz um balanço de fim de ano, vem sendo um momento para olhar o saldo da vida inteira, talvez o que muitos chamam de crise dos 40. Enquanto escrevo esta crônica, ainda tenho 39 anos, e provavelmente agora, enquanto está sendo lida, já terei cruzado a fronteira simbólica rumo aos "enta".

Pelo menos de uma coisa não posso reclamar. Com todas as dificuldades e dando um passo de cada vez, consegui alcançar uma meta que era ser escritor, mas sabia que deveria estudar mais do que decorar poesia para as garotas. Além de namorar, era preciso laborar. E além do curso de Letras, onde encontrei colegas e professores ótimos, fui atrás de oficinas literárias.

Há quem diga que as oficinas seriam desnecessárias para o surgimento de autores, pois os supostos grandes talentos encontrariam um caminho próprio para serem descobertos pelas editoras ou algum padrinho. Pelo que venho acompanhando, a realização de oficinas deixa o leitor mais agudo, com mais habilidade para escolher o que ler entre a imensa oferta de títulos e categorias disponíveis atualmente. Já seria um grande ganho cultural para a sociedade se oficinas de leitura e escrita fossem oferecidas em larga escala, e certamente teríamos um universo de leitores bem maior que os minguados existentes. Se um aluno de oficina vai se tornar um escritor com uma carreira, ninguém pode saber, nem o professor, muito menos o próprio aspirante.

Mas é certo que o ambiente de oficina literária é o melhor lugar para se dar os primeiros passos. Apesar das limitações do horário de trabalho (nessa altura era atendente numa videolocadora), consegui fazer oficinas durante a faculdade na Uerj. A melhor delas, que pude frequentar durante um ano inteiro, foi a do Antônio Torres, num curso do programa Escritor Visitante. O autor de "Essa terra", que acabou se tornando meu amigo de vida inteira, trabalhava os textos de cada um dos alunos, fazendo com que todos nos lêssemos e apontássemos qualidades e defeitos no que estávamos produzindo. O Antônio costumava levar outros escritores para conversar conosco, e daí também recebíamos dicas preciosas de autores bem diferentes, como Carlos Heitor Cony, Mauro Pinheiro, Ronaldo Wrobel e o saudoso Alcione Araújo. Essa base de perspectivas deu à turma, ou pelo menos para mim, a ideia da literatura como uma experiência compartilhada e cheia de caminhos possíveis. A solidão da leitura silenciosa e o isolamento para a escrita em si são outros quinhentos.

Oficinas de literatura são locais não onde as coisas são consertadas, como as de carros, mas onde são experimentadas em busca de melhores resultados. Vejo-as mais como laboratórios, no sentido de pesquisa do termo, e no lugar de tubos de ensaios e microscópios existem ideias, que se vertem – laboriosamente – em palavras, sentenças e textos em prosa e verso. Por falar em verso, creio que é a categoria que mais precisa de oficina de leitura e escrita. Muita gente escreve poesia mas não lê muito ou pesquisa, quase sempre com a conversa fiada de que os versos são inspirações que brotam do fundo d'alma – a literatura para crianças padece do mesmo mal. O poeta Paulo Henriques Britto, que domina técnica de cabo a rabo e ministra uma oficina de criação poética na PUC-Rio, já me disse que uma parcela de alunos se pirulita das aulas quando descobre que é preciso aprender a dominar as famigeradas e temidas formas fixas antes de praticar os suaves e mudernos versos livres. Nêmesis!

Faço um balão aqui e, saindo da estradinha da digressão, volto para a avenida do balanço de 2015.

Publiquei meu primeiro romance neste ano. Depois de uns 10 livros passeando por poesia, conto, infantil, juvenil e crônicas, achei que era hora de trabalhar num texto mais longo, que não tinha feito ainda por falta de tempo para me dedicar a uma empreitada de maior prazo. Trabalho desde os 14 anos (antes de entrar no McDonald´s aos 15, fui ajudante numa barraca de cachorro-quente) e sou escritor de contraturno, como é a maioria. Mas como sobrevivi em 2014 a uma tese de doutorado, cheia de regras acadêmicas e outros gueriguéris, saquei que na verdade eu não tinha escrito um romance ainda por pura preguiça e desculpa esfarrapada, visto que o meu subconsciente devia me puxar mais para a prática de ver filmes, séries e jogar videogames.

Então me lancei na ideia de retornar a um tempo que, para mim, foi tão belo e trágico: a primeira metade dos anos 1990. Tinha revisitado o período num poema que a prefeitura havia me encomendado para um projeto sobre a cidade e mudanças. Essa demanda chegou em boa hora, pois ao passar pela Taquara, fiquei triste ao ver que o McDonald´s onde iniciara na vida do trabalho, em 1991, havia desaparecido para dar lugar a uma passarela do novo ônibus expresso carioca. Mesmo com o poema, ainda fiquei irrequieto com a ideia de que as memórias da minha geração estavam sendo também demolidas.

Não sei por que motivo, esse período entre o impeachmentdo Collor e a estabilidade econômica é pouco trabalhado na literatura. Talvez, ao voltar no tempo, a turma prefira ir mais para trás e mergulhar na ditadura, que é, como temática, um prato cheio para qualquer manifestação artística. Considero os primeiros anos 1990 uma época em que o país se olhava, após a burrada que fez nas primeiras eleições diretas em muito tempo, meio que se perguntando "o que fizemos?". No meio daquela hiperinflação e desemprego, as classes mais pobres, como a minha família, só se lascavam mais uma vez.

Não faz diferença para o leitor o que se passa nos bastidores de um livro. A chamada autoficção, em que a literatura pega fatos realmente ocorridos e brinca com o leitor, pode ter diferentes matizes e técnicas envolvidas, mas ao optar por esse período e situar a história basicamente numa lanchonete de fast-food tive que pensar, primeiramente, no que deveria evitar:

1 – Escrever um metalivro. Gosto de ler esse tipo de história, mas acredito que no fundo livros que tratem do meio literário interessam mais a quem é da área.

2 – Produzir um calhamaço. Os livros que ficam em pé sozinhos estão voltando à moda. No entanto, ainda que o romance permita uma gordurinha, não curto muito a obesidade mórbida, salvo para projetos literários específicos e de longo prazo.

3 – Agradar colegas de escrita ou demais gente da área. Nesses 15 anos em que circulo pelo meio literário, já vi muito tipo de armadilha em que um novo autor pode cair, e uma delas é escrever aquilo que está na moda ou rende pautas. Nunca liguei para as modinhas e não sou mais novo para cair nessa: sou seminovo. Tomei algumas opções narrativas que, na hora, já me deixavam claro que poderiam desagradar meus colegas. Já tem gente demais escrevendo para escritores.

4 – Escrever algo que não exija nada ou não diga nada ao leitor. Como venho de classe pobre, o lance mais fácil seria escrever algo com muito realismo e violência, bate-estaca ou com estética de periferia cult. Não é só isso, poxa, fora da Zona Sul também se curte poesia e ideias mais complexas, também se reflete. Professores e jornalistas que não gostam de sair do conforto da parte rica da cidade criaram um estereótipo de periferia e subúrbio que não condiz muito com a realidade. Certa vez uma figura respeitada das letras me disse, cheio da boa intenção mas com um rótulo nas palavras, quando estava começando a publicar: "Como vem do subúrbio, você não devia fazer sonetos, e sim hip-hop." Aqui, ó.

5 – Emular Kafka, Proust, Joyce, Faulkner ou David Foster Wallace. Já passei da idade de matar o pai. Se pudesse imitar algum gênio, seria o Millôr Fernandes, mas ele é tão imitável quanto Pollock.

6 – Fazer uma experimentação inédita e vanguardista em termos técnicos, reinventando a roda mais uma vez para chocar visceralmente o leitor. Mais uma vez, já tem muita gente fazendo isso.

7 – Entupir o leitor com referências literárias e técnicas só para mostrar que sei. Essa opção está intimamente ligada à anterior. Quando tinha 20 anos, no meio da faculdade, eu achava legal deixar explícitas as minhas leituras em tudo o que tentava escrever, talvez para legitimar o texto. Com o tempo, ficar esfregando na cara do leitor o que se leu ou se estudou ou se refletiu cria algo que se parece com aquele pedaço de picanha em que a gordura é maior que a carne em si.

8 – Escrever um livro sobre jovens que um jovem de hoje não possa ler. Isso seria um contrassenso. Aliás, minha grande curiosidade era ver como jovens nascidos já com a situação do país mais tranquila iriam encarar uma história de formação de uma geração passada. É interessante essa distância, pois jovens de hoje são, em vários aspectos, mais antenados e espertos do que nós fomos, têm uma voz que a gente não tinha ainda.

E assim, tirando a gordura do que não fazer, mergulhei nos anos 1990 para fazer um romance de formação – ou bildungsromanpara os íntimos. Coloquei personagens sem nome, pois além de gerar certa empatia com o leitor, poderia representar um país que se também descobria, errando e tendo que seguir em frente. Perto do fim, mudei da terceira para a primeira pessoa e reescrevi tudo. Pelas semelhanças cronológicas e fatuais, tinha certo pudor de ficarem pensando que o personagem era eu, daí a terceira pessoa. Mas ao experimentar a primeira, caiu a ficha de que o leitor poderia pensar "putz, esse garoto sou eu". E felizmente algumas resenhas, especialmente em blogs de jovens, apontaram para isso.

Uma ironia cruel é estarmos vivendo o início de uma crise econômica como não se via desde esse período. E política também, com direito ao termo impeachmentvoltando à baila. Sorte que tudo o que nos espera na esquina sempre é, felizmente, um mistério.

Diferentemente do que eu imaginava quando tinha 15 anos, agora na beira dos 40 não tenho muitas certezas sobre a maioria das coisas. Mas talvez olhar para trás permita que a gente se prepare um pouco mais para seguir em frente. Ao ter retornado aos anos 1990, me colocando de volta atrás do balcão para olhar para a realidade que me cerca, foi um passeio interessante e produtivo. Enquanto fazia o movimento de infinito andando para trás ao passar o esfregão, sem saber estava cursando minha primeira oficina literária.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.