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“O Devoto” - Conto inédito de Marcelo Maluf

Rodrigo Casarin

28/12/2015 08h00

Marcelo Maluf

carneirosNesta semana o Página Cinco abre espaço para alguns autores que publicaram bons livros em 2015 mostrarem um pouco mais de seu trabalho por meio de textos até então inéditos. Marcelo Maluf lançou "A Imensidão Íntima dos Carneiros", no qual flerta com o realismo mágico para construir uma história sobre gerações de uma família de imigrantes libaneses – o autor já falou sobre a obra aqui, inclusive. Agora, no conto "O Devoto", Maluf apresenta um personagem que repassa momentos essenciais de sua vida em meio a uma luta. Confira:

"O Devoto"

"São Miguel Arcanjo, defendei-nos neste combate,
cobri-nos com o vosso escudo contra os embustes e ciladas do demônio".

1º Round

Em câmera lenta, da direita para esquerda, o golpe cruzado, o punho no ar até encontrar a cabeça do meu adversário. Estou aqui. Pronto. Em luta. Persigo com os olhos o choque da minha direita pesando no maxilar de um cara que desconheço se ouve Mozart, Rolling Stones ou o Roberto Carlos.

As bocas na plateia articulam palavras. Os sons se embaralham em meus tímpanos e formam uma massa sonora que soa como aquele mantra tibetano: Om mani padme hum. Aprendi com um monge, mestre de kung fu. Repito-o todos os dias, mesmo sem saber o seu significado. Ignoro se as pessoas sabem das minhas vontades e desejos, como uma macarronada, um banho quente, um filme do Clint Eastwood e uma sessão de shiatsu. Agora, por exemplo, eu gostaria de estar no alto de uma montanha gritando "aleluia" ao vento ou nadando nu numa lagoa, o corpo secando numa pedra, como um lagarto ao sol.

2º Round

Um soco no meu supercílio esquerdo me põe lúcido nesse ringue. Em batalha. Quando criança eu sonhava em ser padre. Fui coroinha. Numa sexta da paixão, troquei hóstia por pipoca. Nunca mais voltei.

Planto os meus pés no chão para não tombar por falta de presença. É quase impossível escapar de um soco, assim como da lembrança de minha mãe colocando as minhas mãos para trás e cantando: "Mão molinha, mão molinha, vai bater na ca-rinha". Ela apontava o crucifixo dependurado na porta da cozinha. Dizia que era o Cristo quem me estapeava. Tenho como alvo o centro da testa do meu rival. Há muito perigo em mirar o olho. Nunca soube explicar esse princípio, jamais ousei olhar no olho de um rival para descobrir os seus segredos.

3º Round

Outro soco na boca do meu estômago revira as batatas fritas de ontem, o açaí e a torta de maçã. Atormenta-me o fato de agora estar arrependido de ter falado o que não devia para Teresa, meu amor, talvez ela não me perdoe por aquelas palavras desencaixadas: emagrecer, tédio, mãe. Não exatamente nessa ordem. A cama rangia, o quarto cheirava a mofo, as lâmpadas estavam acesas e eram de 90 watts. Minha mãe na sala rezava o terço.

Eu não sei dizer as palavras do jeito que devem ser ditas, só sei usar as mãos. Ela disse que eu lhe dei uma bofetada. Foi ela quem pediu: Me bate. Me bate. Me bate. Acusou-me, apontando com o dedo médio, pelo vergão na orelha. E brincamos: "Mão molinha, mão molinha, vai bater na ca-rinha". Eu lhe disse que eram as mãos do Cristo. Cambaleei assombrado por um gancho. Minha língua entre os dentes, os dentes tortos da Teresa na plateia. O sangue que me escapa atinge a roupa do árbitro e mancha o solo sagrado do ringue.

Quando nos conhecemos, Teresa cuspia nos meus copos com vodca. Parei de beber. Para a alegria de mamãe, Teresa me levava à missa todos os domingos. Tornei-me devoto de São Miguel Arcanjo. Teresa gostava de filmes chineses com samurais, passei a acreditar na luta como uma prática espiritual. Nunca as minhas mãos. Sempre as mãos de Deus. Nunca os meus pés, sempre os pés de Deus. A raiva contida, canalizada para um fim maior.

Meu adversário dança à minha frente, uma gota de suor despenca de sua testa, transforma-se em sangue no chão. Sigo numa sequência: um cruzado, um direto, um uppercut, golpes rápidos e precisos, outro direto e ele cai. Teresa, na plateia, articula: Me bate. Me bate. Me bate. O gosto da macarronada nasce em minha saliva, o sorvete de pistache, a virilha depilada da Teresa, o desenho em V.

Nocaute

Três diretos bem dados me jogam na plataforma. O juiz conta: um, dois, três, quatro, cinco, seis. Eu cuspo e levanto. As mãos do Cristo crescem dentro das minhas luvas. Outro princípio para não cair é mirar um ponto fixo. Pela primeira vez, olho nos olhos do meu inimigo. As mãos poderosas de Deus. As minhas mãos. Minha mãe ajoelhada, em oração. Vejo São Miguel Arcanjo no fundo da plateia. Sua espada. Meu escudo. Minhas palavras desencaixadas. No espelho da pupila do meu opositor, leio os lábios de Teresa: Me bate. Me bate. Me bate.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.