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Raimundo Carrero transformou AVC em romance que lhe valeu o Prêmio APCA

Rodrigo Casarin

03/12/2015 09h51

Carrero

No final de 2010 o escritor Raimundo Carrero, hoje com 67 anos, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Depois de 15 dias internado em uma UTI, sobreviveu, mas com sequelas no lado esquerdo de seu corpo. Inspirado por esse dramático momento da sua vida que escreveu "O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo", que acaba de vencer o prêmio da Associação dos Críticos Paulistas de Arte (APCA) de 2015 na categoria Romance e Novela, desbancando "Pssica", de Edyr Augusto – falei sobre ele aqui -, "Beije-me Onde o Sol Não Alcança", de Mary del Priore, e "A Imensidão Íntima dos Carneiros", de Marcelo Maluf – aqui uma entrevista que fiz com o autor sobre o título.

Na obra, o narrador nos apresenta um personagem chamado apenas de Escritor, que vive em Recife e certo dia acorda sem parte dos movimentos corporais, com a boca torta, sobrancelhas desalinhadas, testas franzidas, pele branca, olhos sem vida e cai sobre sua mulher ao tentar levantar da cama. O hospital é o seu destino, evidentemente – boa parte da obra se passa com o protagonista internado e não é segredo algum que o livro é profundamente autobiográfico.

O Senhor Agora Vai Mudar AG V5.inddO que temos em um primeiro momento é um narrador muito atrelado às questões físicas do personagem, compreensivelmente o primeiro aspecto a se apegar ao se observar alguém que acaba de sofrer um forte abalo justamente em seu corpo.

Mas não demora – e nem poderia, o livro tem apenas 112 páginas – para que o narrador adentre à cabeça do Escritor e praticamente se funde a ela, revelando "o desejo de retornar aos dias e às noites vagabundas. Ao sol e à lua. Ao uísque e a cerveja". Dentre instantes de revolta com aqueles que estão ao seu redor – "vocês estão vivendo comigo, mas não em mim. Não compreendem o que está se passando -, algum delírio e muita memória, temos contato com momentos marcantes da vida do Escritor.

Lembranças de livros de autores clássicos como Tolstói, Dostoiévski, Clarice Lispector e James Joyce ajudam o protagonista a entender a melhor forma de se relacionar com os outros no delicado momento que vive. Ao mesmo tempo, encontra metáforas sobre a vida e sua finitude em lugares tão díspares quanto aranhas que passeiam pelo quarto e a mitologia cristã.

Em situações extremas como essa – nunca passei por isso para saber, digo por suposição minha e de muitas pessoas ao meu redor -, parece-me inevitável o sentimento de que não podemos viver com um corpo paralisado, que isso faz de nós alguém que não vale nada, que a morte imediata seria uma opção muito bem-vinda. É justamente isso que o Escritor combate ao repassar alguns dos principais trechos de sua vida – principalmente os relacionados à carreira, como o íntimo contato com Ariano Suassuna, um mestre tanto para o personagem quanto para Carrero – e ressignificar sua própria existência.

Após a tensão do AVC, Carrrero construiu um romance pungente. "Convencido de que não era mais do que um monte de carnes, músculos e nervos inúteis, deita‑se na cama, já agora e definitivamente à espera da carrocinha que o levaria para o lixão, cercado de urubus, lagartixas, cobras e escorpiões", revela em um momento o narrador sobre o personagem, o mesmo narrador que traz da mente do Escritor a seguinte constatação: "A única decisão verdadeiramente correta e definitiva era a de construir uma obra literária, plena e absoluta, na qual os miseráveis tivessem voz, sem discurso eloquente de comício eleitoral. E onde a Beleza estivesse viva e resplandecente. Literatura não é ciência, é arte, reunião de elementos estéticos".

Importante cruzar esses dois momentos da obra de "O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo". Importante perceber que se trata da história de alguém que, sem ter outra saída após um AVC, precisa cuidar para que mude somente de corpo, não de vida.

Outros premiados

Em Literatura, os outros premiados do Prêmio APCA de 2015 foram "Testemunho Transiente", de Juliano Garcia Pessanha (Grande Prêmio da Crítica), "A Noite do Meu Bem", de Ruy Castro (Ensaio/ Teoria e Crítica Literária/ Reportagem), "Antes e Depois", de Flávio de Souza (Infantil e Juvenil), "O Livro das Semelhanças), de Ana Martins Marques (Poesia) e "Jeito de Matar Lagartas", de Antonio Carlos Viana (Contos e Crônicas), além do empate entre "Elis Regina", de Júlio Maria, e "Júlio Mesquita e Seu Tempo", de Jorge Caldeira, em Biografia, Autobiografia e Memória.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.