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Filme sobre David Foster Wallace ajuda a compreender a obra do escritor

Rodrigo Casarin

28/10/2015 14h33

Jason Segel interpretando David Foster Wallace.

Jason Segel interpretando David Foster Wallace.

Não gosto de andar de avião, ainda mais em viagens longas. Passar horas compactado como uma sardinha, no entanto, às vezes tem suas vantagens. Dei sorte em um voo que fiz no começo desta semana ao achar o filme "O Final da Turnê" dentre as opções para assistir na pequena televisão da aeronave. Dirigido por James Ponsoldt, lançado nos Estados Unidos no meio deste ano e previsto para chegar aos cinemas brasileiros em meados de novembro, apesar de já ter sido exibido no Festival do Rio, o longa é uma adaptação do livro "Although of Course You End Up Becoming Yourself: A Road Trip With David Foster Wallace", do jornalista David Lipsky, que relembra como foram os dias que viveu com o escritor David Foster Wallace (DFW) para fazer uma reportagem para a revista Rolling Stone.

Desde que se enforcou no quintal de sua casa em 2008, dando cabo de sua vida aos 46 anos, a devoção a DFW apenas cresce. Tido como um dos maiores escritores do século 20 e enaltecido por conta da prosa pós-moderna que apresenta ao leitor profundas reflexões sobre o mundo contemporâneo, seu nome esteve em grande evidência no Brasil entre o final do ano passado e o começo deste ano por conta do lançamento de "Graça Infinita" (veja a reportagem que fiz na ocasião), tradução de "Infinit Jest" feita por Caetano Galindo e publicada pela Companhia das Letras – que, de David, já havia lançado as coletâneas "Breves Entrevistas Com Homens Hediondos", de contos, e "Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo", de ensaios, além de trabalhar atualmente na tradução do romance inacabado "The Pale King".

É justamente durante o lançamento de "Graça Infinita" nos Estados Unidos, em 1996, que o filme se passa. Jesse Eisenberg interpreta Lipsky, que convence seu editor a investir em uma reportagem sobre um escritor, algo que a Rolling Stone não fazia há mais de dez anos. Vai, então, ao encontro de DFW (interpretado por Jason Segel, o Marshall Eriksen de "How I Met Your Mother"), que está engajado na divulgação de sua obra-prima, prontamente tida pela crítica como um dos melhores livros da história. No calhamaço de 1.144 páginas (na versão de Galindo), o autor constrói um mundo dominado por grandes corporações, com áreas gigantescas tomadas pelo lixo tóxico. Nessa realidade nem tão distante da nossa, três irmãos precisam cuidar do legado do pai, cineasta que se mata após fazer um filme que causa inanição e morte nos espectadores, algo que atrai diversas empresas por conta de sua capacidade letal.

Lipsky passou cinco dias com Wallace, hospedando-se na casa onde o autor vivia com seus dois cachorros, o acompanhando nas aulas que lecionava na universidade e em uma viagem para conversar com leitores. A reportagem que deveria nascer dessa imersão, no entanto, jamais chegou às páginas da Rolling Stone. Lipsky só traria sua versão daqueles dias a público justamente no livro que dá origem ao filme, lançado em 2010, dois anos após o suicídio do escritor.

Wallace tinha 34 anos quando viveu esse breve período em companhia de Lipsky e o que o longa nos apresenta é um retrato do artista que rejeita a grandiosidade do momento em que vivia e de sua obra, ao mesmo tempo que luta para compreender e tentar coexistir com tudo o que o cerca. Vemos um DFW recluso, com dificuldades em se relacionar com as pessoas principalmente por ter medo de magoá-las e que se sente atraído pelas garotas bonitas que vão lhe ouvir falar em palestras – momentos sempre angustiantes para o autor, que gostava até de usar saliva artificial para não ter problemas com sua baba. A preocupação de DFW sobre como o homem lida com a tecnologia – e vem se tornando refém dela – fica explícita quando diz não ter televisão em casa para não passar a vida emulando uma realidade presente apenas em sua cabeça, oferecida pronta pelos programas pops que ele tanto gostava de assistir, como desenhos animados e filmes de ação.

DFW real em uma de suas apresentações.

DFW real em uma de suas apresentações.

Reflexo na obra

Podemos muito bem observar todas essas questões na obra de DFW. A maneira como a tecnologia pode fazer com que pessoas passem a viver imersos em uma ilusão oferecida pelos dispositivos midiáticos – o que as levaria a uma morte ao menos metafórica – está no próprio "Graça Infinita". A capacidade de deslocamento e o poder de empatia ficam explícitos no ensaio "Pense na Lagosta", no qual se coloca no lugar do animal que grita e se debate enquanto é cozido vivo em uma panela. A relação interpessoal, no excelente miniconto "Uma História Radicalmente Condensada da Vida Pós-Industrial" (que coloco logo abaixo do texto para quem quiser conhecer). As angústias, em todas as linhas que escreveu, mas muitas vezes com abordagens originais, como em "Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais vou Fazer", no qual tenta entender qual é a graça de se fazer um cruzeiro, viagem-fetiche dos nossos dias.

Nesse sentido, a maneira como a fragilidade emocional de DFW é exposta no longa se encaixa perfeitamente em "Isto É Água", discurso que proferiu na formatura de uma turma de universitários da qual era paraninfo (aqui tem uma versão dele publicada pela revista "Piauí"). Na tela, em momentos diferentes, Wallace lembra de quando foi internado após um suicídio frustrado, afirma que tinha medo falhar ao tentar se matar e isso afetar de alguma forma o seu cérebro, e diz que em às vezes a depressão lhe deixava com vontade de não seguir em frente. A possibilidade de colocar um ponto final em sua existência parecia sempre latente no escritor e muito do discurso segue essa linha. "A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos trinta, ou quem sabe aos cinquenta, sem querer dar um tiro na cabeça", fala em determinado momento aos alunos. Sempre choca olhar para sua história e saber que, apesar de toda essa consciência, Wallace não encontrou a Verdade que lhe manteria vivo.

Como filme, "O Final da Turnê " tem seus problemas. É arrastado e um tanto cansativo, quase sempre se desenrola morosamente com conversas e alguns conflitos entre Wallace e Lipsky. No entanto, tem seu valor justamente por apresentar uma versão do grande escritor. É uma oportunidade para quem nunca leu DFW conhecer o mínimo de sua vida e do que passava em sua conturbada e inquieta cabeça – ainda que seja mais recomendado ler seus textos, nos quais, com apuro estético, transforma a verborragia presentes nos diálogos em grande literatura. Paradoxalmente, a arte e a biografia de gente como David Foster Wallace são fundamentais para que não atiremos em nossa cabeça. Ou não nos enforquemos em uma árvore.


 

"Uma História Radicalmente Condensada da Vida Pós-Industrial", de David Foster Wallace

Quando foram apresentados, ele fez uma piada, esperando ser apreciado. Ela riu extremamente forte, esperando ser apreciada. Depois, cada um voltou para casa sozinho em seu carro, olhando direto para a frente, com a mesma contração no rosto.

O homem que apresentou os dois não gostava muito de nenhum deles, embora agisse como se gostasse, ansioso como estava por conservar boas relações a todo momento. Nunca se sabe, afinal, não é mesmo não é mesmo não é mesmo."

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.