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Carneiros dão o tom de romance sobre violência, imigração e espiritualidade

Rodrigo Casarin

02/10/2015 11h45

carneiros

Nunca matei e nem vi matarem um carneiro para saber exatamente como é a cena, mas sempre ouvi dizer que tal animal, ao perceber que será sacrificado, aceita seu destino passivamente, sem lutar contra ele. Essa imagem pode ser uma das chaves para se entender "A Imensidão Íntima dos Carneiros", primeiro romance de Marcelo Maluf, que, após livros infantis e de contos, estreia na narrativa longa com uma bela obra, repleta de simbolismos e metáforas construídos com uma delicada linguagem.

O autor em muito se apoia no passado de sua própria família para arquitetar uma história que se divide entre um avô e um neto, este vivendo próximo de nossos dias em Santa Bárbara D'Oeste e aquele sendo um imigrante libanês que vem para o Brasil para se distanciar fisicamente de uma tragédia.

A partir disso que Maluf cria uma narrativa que em alguns momentos flerta com o fantástico para tratar de temas bastante atuais. "Uma leitora me chamou atenção para uma das primeiras cenas do livro, em que carneiros se afogam no mar, fazendo uma relação com os refugiados sírios", diz ele em entrevista ao blog, que pode ser lida logo abaixo.

Ainda com relação aos imigrantes contemporâneos, a violência e o deslocamento – e a violência que leva ao deslocamento – são marcas da história, bem como as questões religiosas, no romance apresentadas de maneira bastante plural, focando na espiritualidade que está no cerne de cada tradição ou crença. Veja a entrevista com o autor:

Os carneiros aparecem de diversas maneiras em seu livro, como personagens com toques fantásticos, como símbolos e também como metáforas. Como lhe ocorreu construir uma narrativa cheia de flertes com o animal?

Há dois grandes motivos que me levaram aos carneiros. O primeiro está diretamente relacionado ao fato de Assaad, meu avô e personagem principal do romance, ter sido pastor de carneiros nas montanhas de Zahle, no Líbano, quando criança. O outro está ligado ao sobrenome da família "Maluf", que em árabe significa "engordado", de carneiro engordado, pelo modo como criavam os animais, dando-lhes a comida com as mãos para que tivessem boa gordura. Partindo desses dois motivos busquei explorar toda simbologia e metáforas possíveis, no que diz respeito ao carneiro ser usado em muitas mitologias como animal de sacrifício. E, por fim, a relação com o próprio Cristo, o cordeiro que foi imolado. Um símbolo sagrado. As mortes nesse sentido, e creio que no romance também, ganham um lugar ritual, simbólico dentro da narrativa.

Aliás, você tem alguma relação especial com carneiros ou apenas os utilizou para sua literatura mesmo?

Eu sempre tive uma relação de reverência pelos carneiros. Minha formação religiosa é cristã/católica. A imagem do cordeiro de Deus sempre esteve presente em minha vida desde muito cedo. Quando descobri as histórias de meu avô, foi inevitável estabelecer essa relação. Depois de ter escrito o romance, essa afinidade ficou ainda mais profunda. Há ainda o fato de eu ter me tornado vegano em 2013, quando estava no início da escrita do romance, que modificou muito meu modo de perceber os animais.

Em quanto você se apoiou na história da sua própria família para construir a narrativa? Como foi o processo?

Muitas histórias que estão no romance são reais, pelo menos do meu ponto de vista. Há um exercício da memória ali e muita invenção, é claro. Mas a gênese dessa narrativa eu ouvi do meu Tio Sami que, aliás, é um dos personagens do livro. Após a morte de meu pai, ele contou muitas histórias sobre meu avô que Michel, meu pai, faleceu sem conhecer. Muitos detalhes e cenas eu, propositalmente, misturei com histórias de minha própria família, do ambiente que vivi em minha infância. Trabalhar com a fronteira entre o autobiográfico e o fantástico foi uma opção para homenagear a literatura árabe e o realismo fantástico. Durante a escrita tive de parar muitas vezes para me restabelecer. Eu sabia que estava lidando com questões que mexeriam demais comigo. E foi o que aconteceu. Mas eu sabia que precisava escrever e que era necessário deixar que essa história se concretizasse.

Violência e deslocamento marcam a história, algo que temos visto com frequência atualmente, com muita gente deixando áreas de guerra ou descalabro e indo para a Europa, principalmente. O tema abordado no livro, com um recorte bem pontual, focado em uma família, parece sempre acompanhar a humanidade, não!?

Infelizmente a violência, o deslocamento forçado a que uma situação de guerra e opressão pode produzir, não são histórias do passado. A atualidade dessas questões, a perversidade com que se trata de refugiados e imigrantes no mundo todo, está presente no livro, extraída de uma história familiar que conheço de perto, mas que resiste aos anos e marca a humanidade com dores profundas. Uma leitora me chamou atenção para uma das primeiras cenas do livro, em que carneiros se afogam no mar, fazendo uma relação com os refugiados sírios. Sincronicidade que eu preferia que não tivesse existido e ficasse apenas em minha ficção. Mas a falta de humanidade e compaixão não é exclusiva da ficção. É uma sombra que a humanidade ainda não curou.

Também me chamou atenção como a espiritualidade é apresentada de uma maneira plural, meio que pegando o cerne de cada religião ou crença. Essa foi uma preocupação sua?

Sim. A espiritualidade humana vem sofrendo já há um bom tempo, ou desde sempre, um processo de banalização, com grande responsabilidade das religiões. Muitas vezes ela é usada como arma de grupos radicais, uma minoria que justifica suas ações usando o nome de Deus. E o que as pessoas veem é só isso, e não a sua força mística e profunda. O preconceito aliado a uma visão superficial da experiência espiritual empobrece as religiões. Por isso, no meu romance eu aproximo o cristianismo do islamismo, por intermédio de Assaad, para redimir essa relação tão conflituosa entre religiões, para mostrar a pequeneza que é brigar por ideologias religiosas. Quis mostrar ali que a compaixão, a misericórdia, o conhecimento de si mesmo são maiores e estão na essência de todos os grandes mestres espirituais da humanidade. Maomé, Cristo, Buda, sempre disseram a mesma coisa de formas diferentes. Não são os dogmas que importam, mas as relações, o modo como cuidamos ou deixamos de cuidar uns dos outros. Enfim, a grande questão sempre é o amor.

Você já tinha lançado livros de contos e infantis. Por que escrever um romance e como foi a experiência com o gênero?

Ao começar a pensar em como iria narrar a história de Assaad, entendi que a melhor estrutura para desenvolvê-la era o romance. Principalmente quando optei por contá-la pela voz de dois narradores, com tempos e espaços distintos. E é claro que encontrei muitas dificuldades pelo caminho, mas, ao mesmo tempo, me senti muito à vontade. A experiência de ter me aventurado em prosa longa mudou o meu modo de pensar o texto literário, creio que encontrei no romance uma liberdade maior para escrever. Algo com a questão da lentidão do processo, da apreciação da escrita, do mergulho nas personagens, pelo menos para mim.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.