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Professora da USP fala sobre romance inédito de Mário de Andrade

Rodrigo Casarin

07/04/2015 06h00

MdAO UOL publicou hoje uma reportagem que assino sobre as novidades do escritor modernista Mario de Andrade (leia aqui), autor homenageado da Flip deste ano, que estão para ser lançadas. Dentre as obras, o destaque é o livro "Café", ainda inédito. Sobre ele, conversei com Priscila Figueiredo, professora de Literatura Brasileira da USP e autora de "Em Busca do Inespecífico", estudo sobre o autor. Respondendo três perguntas, Priscila dá uma boa panorâmica do volume que está para ser lançado pela Nova Fronteira.

Do que trata o romance "Café"? Qual a sua história?

Antes de mais nada, é preciso ter em conta que o romance "Café" começou a ser concebido em 1929, aproveitando notas e esboços para o que, como mostrou a pesquisadora Tatiana Figueiredo, seria um outro romance ("Vento", iniciado em 1925) e depois de dois acontecimentos bastante marcantes, um especificamente para Mário de Andrade (a viagem ao Nordeste realizada entre novembro de 1928 e fevereiro de 1929), e outro não só para ele (a crise do café, de 29). Do romance, cuja escrita foi suspensa em 35 e depois retomada em 1942 (para logo ser definitivamente interrompida), foram publicados alguns fragmentos em 1930, mas deles a mais significativa talvez seja a série publicada em 1943, na "Folha da Manhã", "Vida de cantador", sobre Chico Antônio, o famoso cantor de coco que tinha deslumbrado o escritor durante a referida viagem em 29 e que ele ficcionalmente fazia vir a São Paulo tentar a sorte, tal como fizera com Macunaíma, obra que absorve em registro e linguagem mitopoética uma série de elementos da vida contemporânea, sobretudo em São Paulo, e com a qual "Vida de cantador", embora escrita em registro mais realista, tem muitos pontos de contato –a começar por essa saga da migração interna para a cidade já mais economicamente importante do país, migração efetivamente apoiada pelo Estado a partir dos anos 30. Também a pesquisa do que seria um caráter brasileiro aproxima ambos os personagens, um conhecido através de narrativas ameríndias, outro real, com quem o escritor topou em suas pesquisas de campo.

Mas Chico Antônio, conforme seu projeto, não é personagem principal em todo o "Café", cujas partes, aliás, nos chegam em diferentes graus de acabamento (ou inacabamento) e indicam o quanto seu autor de fato intentou figurar a multiplicidade étnica e social que compunha a, em suas palavras, "complexidade civilizada do estado de São Paulo". Nesta, a economia do café teve evidentemente papel estruturante, e sua crise e tudo o que representou— inclusive o reordenamento da política nacional nos anos seguintes—parece ter esclarecido ainda mais Mário de Andrade sobre São Paulo (para não falar sobre o Brasil também), sobre a extrema fragilidade em que assentava sua identidade e unidade, não produzida sem um tanto de cola ideológica ou mitologia bandeirante. Também, ou justamente em consequência dessa crise, sua visão da nossa burguesia, mesmo a mais tradicional, no interior da qual ele tem e continuará a ter fortes relações de amizade, interlocução e trabalho, se torna ainda mais crítica do que já víamos em obras como "Amar, Verbo Intransitivo", dos anos 20.

Qual a importância do romance dentro da obra do Mário de Andrade?

Mesmo que "Café", o romance, não tenha sido concluído, a história desse projeto e do que dele se pôde realizar, bem como a divulgação que dele fez Mário em diferentes ocasiões, por entrevistas e cartas, por exemplo, a grande expectativa de amigos em torno dele e mesmo a publicação parcial de alguns fragmentos a que o autor deu autonomia – tudo isso indica claramente, e ele mesmo chegou a manifestar, que se tratava da sua grande obra.

Ele a concebeu em 29 e depois a retomou em 42, em momentos de profunda crise mundial, quando sentiu, em ambos os momentos, por diferentes que fossem, mas sempre afetando a situação local, que precisava escrever algo de mais envergadura, que trabalhasse com significantes mais referidos à coletividade de forma a superar a dimensão subjetiva e individual e orquestrar massas de sentido mais gerais. Na ópera de mesmo nome, em que ele inclusive aproveita elementos do romance definitivamente abandonado, fica evidente o quanto a consciência de que era preciso apreender a vida contemporânea de maneira mais ampla o leva a uma pesquisa também estética, de velhas e novas formas (como a de um "drama cantado mais diretamente baseado nas forças de vida coletiva"), pesquisa que vem dar as mãos a seu interesse já antigo pelos processos despersonalizantes da arte popular (como utilizados em "Macunaíma").

Por que ele não tinha sido publicado até hoje?

Acho que isso se explica por mais de uma razão, mas uma delas é sem dúvida o fato de que se trata de uma obra que se encontra em diversos estágios de inacabamento – uma obra instável, portanto, não resolvida, acompanhada de inúmeras notas, esboços, planos, com partes em mais de uma versão, e já abandonada em vida pelo autor, abandonada porque grandiosa demais e cujo adiamento mais e mais o torturava. Mas o projeto dessa grandiosidade somado à gigantesca disposição de Mário de Andrade para trabalhar deixaram um material substantivo, que sem dúvida ajudará a compreender obras mais "estáveis", como Macunaíma, e o próprio processo de produção do autor, além de permitir ver o quanto Mário está tentando resolver ou mesmo dramatizar por conta própria e em condições periféricas impasses na representação literária –em vista da ordem ou das desordens do presente –com que muitos escritores na Europa e Estados Unidos, por exemplo, estão se havendo.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.