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Com seriedade e leveza, autor retrata transtornos mentais entre jovens

Rodrigo Casarin

28/04/2020 09h49

Severino em foto de Renata Tavares.

Ao terminar a leitura do texto, Júlia olhou para a professora. Será que ela já sabia? Será que os pais tinham contado algo no colégio? A garota não queria que os colegas soubessem que ela estava fazendo terapia. Tinha vergonha. Ou será que era apenas coincidência? Lila tinha um sexto sentido apurado. Isso era fato.

Júlia começou a responder às questões. Nunca tinha achado uma prova tão fácil e tão a cara dela. Estava no sétimo quesito quando ouviu alguém se levantando. Era Gustavo, que entregou a prova para a professora e saiu ligeiro.

Ele nunca fora dos primeiros a terminar. Realmente, havia alguma coisa errada com Gustavo.

Júlia e Gustavo cursam o sétimo ano num colégio de Recife. Ela é uma dedicada nadadora. Ele, jogador de basquete. Os dois gostam de ler. Os dois também precisam lidar com seus problemas. Ela sofre de Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG). Ele, de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). E ambos protagonizam o romance juvenil "10 Mil Voltas ao Meu Mundo" (Editora do Brasil), de Severino Rodrigues.

Severino é mestre em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco e dá aulas de português no Instituto Federal de Pernambuco. Na literatura, já venceu concursos promovidos por órgãos como a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e a Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil. Entre o final de 2016 e começo de 2017, teve o clique de como poderia tratar nos seus escritos de um tema delicado: a saúde mental dos adolescentes.

Segundo pesquisa conduzida por profissionais de algumas das principais universidades do país e publicada em 2016 na Revista de Saúde Pública, da USP, quase um terço dos jovens brasileiros entre 12 e 17 anos precisam lidar com algum tipo de transtorno mental. Severino foi um desses casos. "Tive TOC na minha adolescência. Sempre quis desenvolver essa questão num personagem, só não tinha tido uma boa ideia. De 2016 para 2017, pensei em criar um microuniverso de adolescentes que cursam o ensino fundamental II e vivenciam questões como o transtorno de ansiedade, o TOC….", conta o professor e escritor em entrevista ao Página Cinco.

Assim surgiu a série "Cabeça Jovem". O primeiro título da coleção foi "Bateria 100% Carregada", no qual Severino tratou de Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). "10 Mil Voltas ao Meu Mundo" é a sequência do trabalho, que já conta também com o fresquíssimo "Mil Pássaros de Papel", no qual o autor aborda a depressão. "Fui percebendo que os adolescentes têm muito interesse e querem debater essas questões".

Para construir as narrativas, Severino diz se basear não apenas na própria experiência (em relação ao TOC, no caso) e na convivência com adolescentes que eventualmente tenham algum distúrbio, mas também em muitas leituras e pesquisas, para que possa entregar ao leitor um texto que leve em consideração todos os cuidados que o tema exige.

"Nunca quis fazer algo didático ou muito explicativo. Gostaria que, de acordo com o comportamento dos personagens, o leitor pudesse visualizar as situações. Me incomodam bastante algumas representações artísticas que tratam desses assuntos com muito humor. Para quem sofre de ansiedade, de TOC, não há nenhuma graça nisso. Minha proposta é apresentar uma abordagem mais séria, ainda que com leveza".

Outra preocupação de Severino é com a própria literatura. Pelo título do segundo livro da série, não é difícil de sacar que a obra dialoga com "A Volta do Mundo em 80 Dias", clássico de Júlio Verne. Júlia e Gustavo mergulham e discutem o livro do francês no clube de leitura do qual fazem parte (a atividade se mostra em alguns momentos complicada para o garoto que, por conta do transtorno, tem certa dificuldade para manter a concentração).

Em seus livros, Severino busca estabelecer pontes com grandes obras da literatura. A aposta é que isso ajude a despertar nos seus leitores o interesse por títulos consagrados. "A ideia é fazer com que o leitor se aproxime não só dos personagens e das tramas, mas também dos livros que esses personagens estão lendo. Quando o leitor encontra um personagem lendo, é provável que ele também vá querer ler aquele livro", aposta.

Citando-se como exemplo, lembra que ele mesmo já percorreu esse caminho algumas vezes: "Aconteceu muito comigo na minha adolescência: estar lendo um livro, outro era mencionado e eu corria atrás desse outro para ler também. Então a série tem essa função, de incentivar ainda mais o estímulo à leitura".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.