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É carnaval: O improvável encontro de Clarice Lispector com Clóvis Bornay

Rodrigo Casarin

21/02/2020 10h33

Pensando no que escrever para vocês nesta época do ano em que metade do povo já está com purpurina até no sovaco e a outra metade não para de reclamar da alegria dos outros, lembrei de um belo conto de Clarice Lispector: "Restos do Carnaval".

Fui em busca de algum outro registro da autora sobre a festa. Em "Todas as Crônicas", volume publicado pela Rocco em 2018, que trombei com o inusitado encontro entre Clarice e Clóvis Bornay. Qual conversa a introspectiva escritora teria travado com o espalhafatoso carnavalesco? Não sei se chamar carnavalesco de espalhafatoso chega a ser redundância, mas não vem ao caso agora.

"Quis o 'destino' (!) que meu caminho se cruzasse com o do Sr. Clóvis Bornay, que dispensa apresentações. Confesso que imaginava – quando e se pensava por um instante nele – um Clóvis Bornay pernóstico, futilmente simpático", assume Clarice na crônica "Carnaval", publicada no dia 6 de fevereiro de 1971. A impressão dela não se confirmou. "Para minha agradável surpresa encontrei um Bornay de conversa mansa, que fala com simplicidade e com amor de suas coisas, usando uma sinceridade quase ingênua de quem não tem medo de ser ridicularizado ou atacado".

Clarice, que chegara ao encontro "com um humor péssimo", traça um brevíssimo perfil do folião Bornay: o medo que sentia dos mascarados quando era bem pequeno, o interesse por esses mesmos mascarados numa outra fase da vida, as fantasias da infância e adolescência… Em 1937 que veio a guinada do carnavalesco. "Completando idade suficiente", foi ao Theatro Municipal de Príncipe Hindu, fantasia feita com pedras de cristal que retirou de um lustre velho largado no porão de sua casa. O sucesso foi tanto que fez daquilo o seu carnaval pelas décadas seguintes, sempre economizando onde podia (trabalhava como museólogo no Museu Histórico Nacional) para, na festa de Momo, incorporar os mais diferentes personagens em trajes majestosos.

"Seu maior desejo é atingir a perfeição…. Perguntei-lhe se tivesse um filho, gostaria que ele se fantasiasse com luxo e tudo. Disse que gostaria porque era uma forma de arte. O mais importante era interpretar a personalidade para ser então um modelo de fantasia, e para isso era preciso ser um bom ator", registra a escritora, que também traz as palavras de Bornay para o que seria o ator ideal. "Faz-se mister ter a inteligência de um gênio, a força de um Hércules, a bondade de um Cristo, as alegrias de uma criança, a ternura como de uma mulher e as artimanhas de um demônio: eis então o bom ator".

Em certo momento do papo, Clarice perguntou qual fantasia Bornay aconselharia que ela vestisse na festa. O carnavalesco pensou um pouco antes de cravar Firmamento. "Seria uma túnica de renda negra cravejada de estrelas e de brilhantes. Na cabeça a meia-lua e numa das mãos uma taça de prata derramando estrelas….". Curioso imaginar Clarice nesses trajes. Ela, pelo visto, gostou da ideia. No final do texto, diz ter saído da conversa de "cabeça virada", querendo "ardentemente minha túnica de renda negra cravejada de cristais, a espargir estrelas duma taça de prata".

Clarice Lispector fantasiada de Anunciação elaborada por Clóvis Bornay…. Só no carnaval mesmo.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.