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Estive em Portugal e me encontrei com a estátua e a pedra de Saramago

Rodrigo Casarin

29/01/2020 10h15

Saramago em foto de Juan Ramón Iborra/FJS.

Estive em Portugal e me encontrei com José Saramago.

Sim, eu sei que ele morreu há dez anos. Não estive com o escritor de carne e osso, é lógico. Encontrei o Saramago em parte do que ele deixou, justamente o que fez dele um nome reverenciado em todo o mundo.

Perambular por Portugal é esbarrar frequentemente em referências a dois escritores: Camões e Fernando Pessoa – este ainda representado por seus três heterônimos mais conhecidos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Por onde passa há versos de Camões e Pessoa, estátuas de Camões e Pessoa, imagens de Camões e Pessoa, ímãs de geladeira, chaveiros e mais uma infinidade de quinquilharias de Camões e Fernando Pessoa. Com Saramago a coisa é diferente. Talvez por não ter a obra em domínio público, sua presença é bem mais discreta, como se vislumbrasse de soslaio os espaços que um dia ocupará.

Aqui e ali esbarrava nessa espécie de presença velada do Nobel de Literatura de 1998. Mas o encontro com o autor de "A Jangada de Pedra" aconteceu onde deveria mesmo acontecer: na Fundação José Saramago, instalada numa construção histórica com arquitetura da fachada pensada para emular diamantes. Os portugueses, no entanto, olharam para aquelas pontas que dão a cara do prédio e o apelidaram com um jocoso "Casa dos Bicos".

Visitar museus, memoriais ou fundações dedicados a escritores é sempre uma ótima forma de se encontrar com esses artistas (quando há a oportunidade, visitar casas transformadas em espaços abertos ao público é ainda melhor, dá até para notar quão cafona Pablo Neruda era). Não foi diferente com Saramago e a instituição responsável por manter seu acervo e sua memória, bem como, ou principalmente, seguir fomentando suas ideias.

Rodar pela Fundação é, dentre outras coisas, se deparar com o Brasil de ontem e de hoje. Uma exposição pequena, mas bem cuidada, lembra da amizade entre Saramago e Jorge Amado. Nas paredes, uma placa em homenagem à Marielle Franco e uma foto do escritor ao lado de Chico Buarque, vencedor do último Prêmio Camões, um dos mais importantes da língua portuguesa, nos trazem ao cenário político atual.

Um dos espaços que mais gostei na Fundação é a parede com edições do mundo inteiro de títulos do autor. Saramago está em 43 línguas e 57 países, números admiráveis mesmo para um Nobel. Um canto com versões em diversos idiomas de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" lembra da obra responsável por mudar a vida (foi tanta encheção de saco em Portugal que ele resolveu morar nas Ilhas Canárias) e a visão que Saramago fazia da própria obra.

"É como se desde 'Manual de Pintura e Caligrafia' até 'O Evangelho Segundo Jesus Cristo', durante catorze anos, me tivesse dedicado a descrever uma estátua. O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de retirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura, é descrever o exterior da pedra, e essa descrição, metaforicamente, é o que encontramos nos romances a que me referi até agora. Quando terminei 'O Evangelho' ainda não sabia que até então tinha andado a descrever estátuas. Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com 'Ensaio Sobre a Cegueira'. Percebi, então, que alguma coisa tinha terminado na minha vida de escritor e que algo diferente estava a começar".

O raro olhar de Saramago sobre seu trabalho está em "A Estátua e a Pedra", conferência feita em Turim, na Itália, e transformada num livreto que conheci na Fundação. No texto, Saramago passa pela própria produção, dedica algumas linhas aos seus livros, questiona o rótulo de "romancista histórico" que críticos pregaram em sua testa e aponta momentos decisivos da escrita, como a constatação de que sua literatura se dividia em duas fases, almejando a descrição da estátua e, depois, a profundidade da pedra.

Nesse encontro com Saramago ainda conheci um bonito vídeo sobre o anúncio do Nobel para o escritor, a maneira como ele recebeu a notícia e a repercussão do prêmio. Como está disponível no Youtube, deixo aqui para que todos assistam e também se encontrem um pouco com o gênio:

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.