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Oscilante, romance de última Nobel discute a ética em relação aos animais

Rodrigo Casarin

14/01/2020 07h00

Olga em Foto de Lukasz Giza.

Janina Dusheiko é uma senhora que vive quase isolada numa floresta da Polônia, onde a neve e o frio deixam a vida especialmente dura ao longo de boa parte do ano. Engenheira especialista na construção de pontes, precisou mudar de profissão e virou professora de inglês – o que talvez explique seu gosto por discursos num tom que varia entre o sabichão e o excessivamente educativo. Um de seus principais prazeres é traduzir versos do poeta inglês William Blake. Embrenhada na mata, acredita que os humanos têm a visão, mas "os animais têm a percepção do mundo".

Dusheiko é a protagonista de "Sobre os Ossos dos Mortos", livro de Olga Tokarczuk publicado por aqui pela Todavia logo depois da autora polonesa ser nomeada Nobel de Literatura por conta de "sua narrativa imaginativa, que com paixão enciclopédica representa o cruzar de fronteiras como forma de vida". Confirmando uma das grandes preocupações da própria escritora, a ética em relação aos animais é a principal questão que ecoa ao longo das 252 páginas do romance traduzido para o português por Olga Baginska-Shinzato.

Vivendo numa região forrada de caçadores que são acolhidos ou acobertadores pelas autoridades (os próprios policiais e até o padre local são adeptos da caça, não ligam muito para as leis do país e, muito menos, para qualquer direito que algum animal possa ter), Dusheiko vive em constante litígio com esses homens. Uma série de mortes misteriosas, porém, deixa todos em alerta. Seriam os animais se vingando do terror que lhes infligem? É a possibilidade defendida pela protagonista, que se baseia em certos elementos presentes nas cenas das mortes.

Ao menos inicialmente, na narrativa de Tokarczuk há algo do horror e do estranhamento de Liudmila Petruchévskaia, autora do ótimo "Era Uma Vez a Mulher que Tentou Matar o Bebê da Vizinha" (Companhia das Letras). Já a natureza, seus segredos e sua própria lógica me remeteu a trabalhos do quadrinista Wagner William, especialmente o recém-lançado "Silvestre" (Darkside Graphic Novel), de quem deverei falar em outro momento. No entanto, logo de cara, quando comecei a ler "Sobre os Ossos dos Mortos", um outro livro me veio à cabeça: "Serotonina", de Michel Houellebecq (Alfaguara). Se o leitor talvez tenha que se esforçar para tolerar o protagonista do francês, com a principal personagem da polonesa o exercício de tolerância ou empatia será semelhante, ainda que por motivos bem diferentes.

Dusheiko não apenas crê na astrologia, mas faz questão de mostrar para o leitor como os astros teoricamente explicariam tudo o que se passa no mundo. Profunda conhecedora também na natureza, não perde uma oportunidade de esmiuçar o comportamento de alguma larva que viva em árvores que começam a rarear. Lembra do tom entre o educativo e o sabichão que mencionei acima? Encontramo-nos principalmente nesses momentos, que ocupam longos parágrafos. Se há mérito de Olga em construir uma personagem complexa, mas com momentos tão enfadonhos, também haverá mérito do leitor em superar esses trechos e seguir com a leitura.

Tida como louca por muitos, Dusheiko ainda garante ver o fantasma de sua mãe e vislumbra a República Tcheca, país vizinho cuja fronteira está ali perto de sua residência, como uma espécie de lugar mágico. "É para lá que foge o sol depois de ver todos esses horrores aqui. É ali que minha donzela desce para passar a noite. Sim, Vênus dorme na República Tcheca".

"Sobre os Ossos dos Mortos" chegou às livrarias pouco mais de um mês depois de Olga Tokarczuk vencer o Nobel. É um título que, por si, valeria o prêmio para alguém? Vamos com calma, essa sequer é uma pergunta justa. Quantos dos últimos vencedores possuem um livro tão bom que, sozinho, já justificaria a distinção para o seu autor?

O romance de Olga é sim um bom livro, ainda que oscilante, e que aborda uma questão pra lá de relevante e contemporânea (ética em relação aos animais, só pra lembrar). E também se alicerça num outro ponto bastante em voga em nossos dias. Não tinha registrado até aqui, mas essa é outra máxima da protagonista: "Às vezes, quando um ser humano experimenta a ira, tudo parece óbvio e fácil. A ira põe as coisas em ordem, mostra um claro resumo do mundo. A ira também restaura o dom da clarividência, difícil de ser alcançado em outros estados".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.