Topo

Houellebecq e o mundo incômodo para machões que cultuam a estupidez

Rodrigo Casarin

06/11/2019 09h35

Ele se orgulha de não ser ecorresponsável, de sabotar o programa de coleta seletiva de lixo e de andar num 4×4. "Pode ser que eu não tivesse feito grandes coisas na vida, mas pelo menos contribuiria para destruir o planeta". Dirigindo, acredita que é a velocidade que garante a atenção do motorista nas estradas, então qualquer tipo de limitação aos ponteiros do velocímetro seria a causa direta do aumento de acidentes fatais. Pisa fundo. Despreza completamente nações, pessoas, produtos, qualquer coisa que não seja de meia dúzia de países europeus – o mundo que entende como civilizado se limita a alguns milhões de habitantes. Indigna-se quando não pode acender seu cigarro em lugares fechados ou em quartos de hotéis. É racista, homofóbico e machista – e não vê problemas nisso.

É fácil que discussões ou análises sobre os livros do francês Michel Houellebecq sejam centradas ou, em alguns casos, limitadas aos seus odiosos protagonistas. Temos o tradicional tipinho novamente em "Serotonina", romance lançado no começo do ano na França com a expressiva tiragem inicial de 320 mil exemplares e que há pouco chegou no Brasil pela Alfaguara, em tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Nele, acompanhamos Florent-Claude Labrouste, 46 anos, que debate-se contra a própria ruína anímica enquanto não consegue compreender o que acontece no mundo ao seu redor. Despedindo-se de sua libido, talvez esteja dando início à despedida da própria vida. Ele é o cidadão pintado acima, mas é também um homem babão de meia idade que é feito de trouxa pela ex e que se acha bastante exigente por consumir certa marca de café em pó (atenção: se quiser falar que é exigente com café, diga que prefere grãos moídos na hora, já é um começo).

A boçalidade do narrador e protagonista pode fazer com que o leitor tenha vontade de arremessar o livro longe a cada página percorrida. Torço para que não faça isso. Não prestamos atenção quando Houellebecq nos mostrava, nos romances anteriores, que o mundo está repleto de coisas como Labrouste. Tivéssemos nos atentado – ou escutado quem nos atentava sobre isso -, talvez pudéssemos ter tido a chance de, na vida real, freá-los, contorná-los ou, sei lá, mantê-los envergonhados, mas não foi o que aconteceu. Entendo, seria esperar muito que a literatura, no século 21, conseguisse alertar multidões. Fato é, hoje precisamos lidar com gente da estirpe do protagonista (ou ainda mais tosca, por incrível que pareça) em cada esquina por onde passamos, nos grupos de WhatsApp, nos encontros de família, no meio político…

Dispensemos a tentação de cruzar (ou fundir) o personagem com a maneira como o próprio autor se apresenta ao público. Foquemos na obra, que deveria ser o principal. Digo que o leitor não deve arremessar "Serotonina" longe porque, superada a odiosa (e necessária) primeira camada da história, Houellebecq, como é habitual, toca em temas extremamente importantes do mundo contemporâneo. O escritor, ao menos neste romance, escreve muito mais sobre o hoje, sobre o que já está acontecendo, do que a respeito do que teremos no futuro, contrariando sua fama de vidente, visionário, mensageiro do caos ou qualquer coisa do tipo. A ruína, como a de Labrouste, é agora.

Antes mesmo de terminar a leitura, indiquei uma passagem da obra num outro post, sobre o CRAV, grupo de vitivinicultores do sul da França responsável por promover ataques contra grandes corporações para tentar defender a fatia de mercado em que atuam. Eis o momento, agora transcrito: "Quando fossem assinados os acordos de livre-comércio que estavam sendo negociados com os países do Mercosul, os produtores de damasco de Roussillon não teriam a menor chance, a proteção que a denominação de origem 'damasco vermelho de Roussillon' oferecia não passava de uma farsa ridícula, a invasão de damascos argentinos era inevitável, desde já se podia considerar praticamente mortos os produtores de damascos de Roussillon, não ia sobrar nenhum, nem um só, nem sequer um sobrevivente para contar os cadáveres".

Em "Serotonina", as mudanças globais que impactam localmente levam agricultores da Normandia a tomarem atitudes mais drásticas do que as já tomadas pelo CRAV. Está aí uma das camadas mais interessantes da obra: a possibilidade de discutir como a competição global tem provocado o fim dos empregos, o fim dos negócios e o fim das perspectivas em diversas partes do mundo até outrora acostumadas a uma segurança, a uma confiança no futuro. Algumas pinceladas sobre o fim de profissões que até há pouco empregavam bilhões de pessoas e reflexões sobre pessoas que simplesmente perdem o seu lugar no mundo também compõem a narrativa. "O dinheiro vai atrás do dinheiro e acompanha o poder, essa é a palavra definitiva sobre a organização social", constata Labrouste. E aqui voltamos ao protagonista.

Se podemos lamentar, nos preocupar, solidarizar ou qualquer coisa do tipo com quem se vê desnorteado por conta de grandes movimentos que soam incontroláveis ou inevitáveis e incidem diretamente na própria vida, por outro lado há certa satisfação em acompanhar alguém como Labrouste perdido entre as mudanças. "Deus me deu uma natureza simples, a meu ver infinitamente simples, foi o mundo ao redor que ficou mais complexo; de repente me deparei com um estado de complexidade excessiva do mundo e, simplesmente, não era mais capaz de assumir essa complexidade em que estava imerso, e então meu comportamento, que não pretendo justificar, foi ficando cada vez mais incompreensível, chocante e errático".

O mundo está mudando. Há muitos motivos para se preocupar e questões para resolver – questões que, em muitos casos, sequer estão sendo debatidas com a seriedade que exigem. No entanto, e apesar de alguns indicadores que desanimam quem olha pra frente, esse mundo já não é mais um lugar tão cômodo e seguro para machões abjetos como Labrouste cultuarem sua estupidez.

Você pode me acompanhar também pelas redes sociais: Twitter, Facebook, Instagram, Youtube e Spotify.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.