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Terroristas? Na França, grupo faz ataques para defender produtores de vinho

Rodrigo Casarin

30/10/2019 10h45

Em determinado momento de "Serotonina", romance mais recente do francês Michel Houellebecq (Alfaguara), o narrador constata que a iminente parceria da União Europeia com o Mercosul seria fatal para os pequenos produtores franceses de pêssego, que perderiam mercado para as frutas produzidas por um preço bem mais baixo na Argentina.

A pegada da obra é completamente diferente, mas "O Império do Ouro Vermelho", de Jean-Baptiste Malet (Vestígio), um livro-reportagem sobre a indústria do molho de tomate, também aborda – e com profundidade – como dinheiro e mercadorias transitam com facilidade pelo mundo, impactando severamente comunidades às vezes separadas por um continente.

Dando uma olhada no que a Netflix oferecia para mim, cai na série "Rotten", que expõe o submundo da indústria de alimentos. Achei curioso. Vasculhando a sinopse dos episódios, um da segunda temporada me chamou atenção: "O Reinado do Terroir". Já estava com um branco na mão, então me pareceu uma boa ideia assistir ao que prometia ser um breve documentário sobre como produtores do sul da França se organizam contra a enxurrada de vinhos mais baratos produzidos na Espanha e na China. Esses produtos começam a engolir o mercado até outrora dominado pelos pequenos fazendeiros de Languedoc-Roussilon.

O episódio é uma espécie de cruzamento da realidade apresentada em "O Império do Ouro Vermelho" com o problema detectado pelo narrador de Houllebecq, mas centrando no vinho e nas pessoas engajadas em defender seu território – ou seu terroir –, apostando até na violência para tal. Na hora de brigar contra importações ilegais (ou favorecidas por lobby), pressões de grandes grupos de supermercados e gigantes da indústria, muitos empresários recorrem ao Comité Régional d'Action Viticole, mais conhecido pela sigla CRAV.

O grupo nasceu em 1907, cresceu na década de 1960 e voltou a ganhar destaque há dois ou três anos. Seus ataques costumam contar com dezenas de homens escondidos sob balaclavas e portando armas brancas – eventualmente, coquetel molotov complementa o arsenal. Os alvos são caminhões que transportam vinhos gringos, escritórios do Ministério da Agricultura, redes de lojas que trocaram os vinhos de Languedoc-Roussilon por opções estrangeiras mais baratas, indústrias…

Procurando por imagens do grupo, com frequência nos deparamos com rios de vinho ou mosto se formando nas ruas após alguma ofensiva. Talvez a ação mais famosa atribuída ao Comitê tenha sido contra o escritório de uma distribuidora de bebidas em Maureilhan. O lugar ficou destruído e os próprios revoltosos se incumbiram de filmar a quebradeira. Em outra ocasião, policiais detiveram vinicultores apontados como membros da organização que iriam realizar ataques contra uma empresa de Bordeaux. Não é por acaso que há quem considere o CRAV um grupo terrorista.

Na frente das câmeras, vitivinicultores de Languedoc-Roussilon normalmente negam participar dos atuais atos de violência, mas mostram simpatia pelo que está no cerne da luta do CRAV: a defesa dos pequenos agricultores numa realidade em que produtos e o capital circulam com imensa facilidade, colocando produtores do mundo inteiro em competição e os obrigando a reduzir paulatinamente seus preços, acoçarem seus funcionários (cada vez mais na mão por conta da precarização de leis trabalhistas) e, ainda assim, terem dificuldades para se manter caso queriam ficar distantes das grandes corporações.

Para quem se interessa pelo tema, vale ler "O Império do Ouro Vermelho" e assistir a pelo menos esse episódio de "Rotten", são muitos os pontos de contato entre as histórias, ainda que não necessariamente explicitados. Já o romance de Houllebecq não se centra nessa questão, mas quase sempre vale a pena ler o cara – pretendo escrever especificamente sobre "Serotonina" nos próximos dias, adianto.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.