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Uma feminista vegetariana e um fã de Guimarães Rosa levam o Nobel

Rodrigo Casarin

10/10/2019 09h44

E temos os vencedores no Nobel de Literatura de 2018, quando não foi entregue porque a Academia Sueca chafurdava num escândalo sexual, e de 2019. Acordei pensando que os acadêmicos dariam o prêmio retroativo a um autor que já não está mais vivo, Philip Roth, um dos grandes injustiçados da história da distinção, mas não foi o caso. Uma pena para Roth e para seus fãs, mas pelo menos sobrou espaço para condecorar dois nomes de línguas menos badaladas que o inglês e de países menos badalados do que os Estados Unidos.

A polonesa Olga Tokarczuk, 57 anos, levou o prêmio referente ao ano passado porque sua criatividade narrativa, aliada à paixão enciclopédica, representa o cruzamento de fronteiras como uma forma de vida. Já o Austríaco Peter Handke, 76 anos, ficou com o Nobel de 2019 graças ao seu trabalho influente que, com engenhosidade linguística, explora a periferia e as particularidades da experiência humana. Tudo isso segundo a própria Academia Sueca.

No Brasil, quem quiser ler Olga traduzida para o português terá que dar seus pulos para conseguir uma edição de "Os Vagantes", publicado originalmente em 2007, lançado por aqui em 2014 pela Tinta Negra e que valeu à autora, no ano passado, o pomposo Man Booker International Prize. A obra está esgotada na editora e na maior parte de nossas livrarias, além de não ser fácil encontrá-la em sebos. De acordo com relatos, no livro a polonesa se apropria do corpo humano para deslocá-lo ao longo do tempo e do espaço, numa narrativa marcada por elementos históricos e mitológicos misturados a excentricidades e absurdos.

Na Inglaterra, Olga já foi classificada como "a grande romancista da qual você, provavelmente, nunca ouviu falar", o que também se aplica aos brasileiros, creio – acalmem-se eventuais literatos fãs da polonesa, não se esqueçam que a bolha da literatura é minúscula, o pessoal no bar aqui da esquina não conhece nem o Philip Roth que mencionei no começo do texto. Em artigo para o jornal britânico The Guardian, Claire Armitstead pintou a autora como uma espécie de resistência progressista: ela é uma "feminista vegetariana em um país patriarcal cada vez mais reacionário".

Peter Handke, por sua vez, é um autor um pouco mais próximo dos leitores tupiniquins e pode ser encontrado com facilidade por aí. "A Perda da Imagem: Ou Através da Sierra de Gredos" e "Don Juan (Narrado por Ele Mesmo)", ambos publicados pela Estação Liberdade, estão disponíveis em livrarias. Se fosse para escolher algum, aliás, iria de "Don Juan", que parte do improvável encontro do famoso personagem com um solitário cozinheiro apaixonado por livros nas ruínas do monastério de Port-Royal-des-Champs, na França. Como é possível inferir, a literatura é um dos principais temas de interesse do autor na hora de compor sua própria literatura.

Muitos outros de seus romances, roteiros e peças de teatro – área na qual é bastante festejado – também podem ser achados em alfarrábios virtuais ("O Medo do Goleiro Diante do Pênalti & Bem-Aventurada Infelicidade" me chamou especial atenção). Em 2006, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o escritor disse ser fã de dois autores brasileiros: Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. "Foram grandes aventuras na minha vida de leitor. Uma aventura como 'Perceval', 'Lancelot' e outras narrativas medievais", comparou.

Com uma história pessoal profundamente marcada pela guerra e pelas questões nacionalistas – define-se como "austríaco, esloveno" e "sobretudo vítima da história, pela questão dos Bálcãs", a figura de Handke parece ser um tanto mais controversa do que a da polonesa. Em 2006, teve peças canceladas e um prêmio retirado após comparecer e discursar no funeral de Slobodan Milosevic, ex-líder Sérvio. Em diversos momentos dos anos 1990, aliás, o autor foi criticado por sua postura a favor de uma Sérvia mergulhada no belicismo.

Atualização às 12h40: a Todavia publicará em novembro o livro "Sobre os Ossos dos Mortos", de Olga. Também prometem lançar, no futuro, uma nova edição do outrora intitulado "Os Vagantes", que na nova tradução provavelmente passará a chamar "Viagens" – o título ainda é provisório.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.