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Ao adaptar Lobato, Pedro Bandeira tira racismo e corta Pedrinho da história

Rodrigo Casarin

18/09/2019 07h30

Ilustrações: Renato Alarcão.

Fã assumido de Monteiro Lobato, Pedro Bandeira sempre exaltou a obra do criador do Sítio do Picapau Amarelo. Agora, com o trabalho de Lobato em domínio público, o escritor que já vendeu mais de 25 milhões de exemplares com títulos como "A Marca de uma Lágrima" e "O Fantástico Mistério de Feiurinha", além da coleção "Os Karas", revisita um dos grandes clássicos lobatianos.

Em "Narizinho – A Menina Mais Querida do Brasil", ilustrado por Renato Alarcão e publicado pela Moderna, Bandeira adapta as aventuras da garotinha de sete anos. Dentre as modificações estão a previsível supressão de trechos racistas, a troca de algumas palavras e expressões e o corte completo do personagem Pedrinho da narrativa.

A comparação entre os dois trechos abaixo permite observarmos as principais interferências de Bandeira sobre o trabalho de Lobato. Esse primeiro fragmento foi retirado do texto original de "Reinações de Narizinho" (edição da Biblioteca Azul publicada em 2014; os destaques são meus):

"— Qual sapo, nem papagaio, nem elefante, nem jacaré. Quem vem passar uns tempos conosco é o Pedrinho, filho da minha filha Antonica.
Lúcia deu três pinotes de alegria.
— E quando chega o meu primo? — indagou.
— Deve chegar amanhã de manhã. Apronte-se. Arrume o quarto de hóspedes e endireite essa boneca. Onde se viu uma menina do seu tamanho andar com uma boneca em fraldas de camisa e de um olho só?
— Culpa dela, Dona Benta! Narizinho tirou minha saia para vestir o sapão rajado — disse Emília falando pela primeira vez depois que chegara ao sítio.
Tamanho susto levou dona Benta, que por um triz não caiu de sua cadeirinha de pernas serradas. De olhos arregaladíssimos, gritou para a cozinha:
— Corra, Nastácia! Venha ver este fenômeno…
A negra apareceu na sala, enxugando as mãos no avental.
— Que é, sinhá? — perguntou.
— A boneca de Narizinho está falando!… A boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira.
— Xé! Impossível! Isso é coisa que nunca se viu. Narizinho está mangando com mercê".

Agora, o mesmo trecho na versão de Pedro Bandeira:

"— Se não é o sapo, então é o papagaio! — Continuou Narizinho, recordando-se de que tinha convidado o papagaio para visitá-la. — Ou o Polegar, que está fugindo da Carochinha!
— Qual polegar, nem sapo, nem papagaio, nem elefante, nem jacaré. E é mais que major. É o Coronel Teodorico que vem almoçar aqui no domingo e….
— Nesse ponto, espantou-se com o estado em que estava a boneca da neta: — O que é isso, Narizinho? Onde já se viu uma menina do seu tamanho andar com uma boneca em fraldas de camisa e com um olho só?
E foi aí que aconteceu o maior espanto: uma boneca falando como se nunca tivesse feito outra coisa desde que havia sido construída por Tia Nastácia:
— Culpa dela, dona Benta! Narizinho tirou minha saia para vestir o sapão rajado.
Tamanho susto levou Dona Benta, que por um triz não caiu de sua cadeirinha de pernas serradas. De olhos arregaladíssimos, gritou para a cozinha:
— Corra, Nastácia! Venha ver este fenômeno….
A cozinheira apareceu na sala, enxugando as mãos no avental.
— Que é, dona Benta?
— A boneca de Narizinho está falando!
Tia Nastácia deu uma risada gostosa:
— Xé! Impossível! Isso é coisa que nunca se viu. Narizinho está mangando com a senhora!"

Reparem que, no novo texto, a linguagem muda e Pedrinho desaparece, bem como a expressão "com a beiçaria inteira". Outras comparações também permitem que observemos como o racismo de Lobato ficou de fora da adaptação de Bandeira. "Dona Carochinha botou-lhe a língua – uma língua muito magra e seca – e retirou-se furiosa da vida, a resmungar que nem uma negra beiçuda" e "Na casa ainda existem duas pessoas – Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo", lemos no original. Já na adaptação, assim aparecem esses trechos: "Dona Carochinha botou-lhe a língua — uma língua muito magra e seca — e retirou-se danada da vida, a resmungar" e "Na casa ainda há duas pessoas: Tia Nastácia, a velha cozinheira que carregou Narizinho em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo".

Era mesmo de se esperar que a adaptação de Bandeira desse uma arejada na linguagem e driblasse o racismo de Lobato. No entanto, por mais que soubesse da pouca simpatia do autor por Pedrinho, fiquei surpreso ao notar que o personagem foi simplesmente decepado do texto. Para se ter uma ideia, são mais de 300 citações a Pedrinho em "Reinações de Narizinho". Já no trabalho de Bandeira, há apenas três menções ao nome do personagem, sempre em textos paralelos: uma nota de rodapé que cita "Caçadas de Pedrinho", obra ainda mencionada no posfácio, e uma referência direta ao garoto também no posfácio. Nesta ocasião, aliás, o escritor justifica a que, provavelmente, é a intervenção mais drástica no texto lobatiano:

"[Pedrinho] é o mais fraco de todos os personagens da saga. Não pensa nada, não imagina nada, nada resolve. Provindo da ''capital'' para o 'isolamento' da vida no campo, nada traz consigo, nenhuma informação urbana, dos progressos, de sua escola, nem quaisquer experiências que poderiam servir como contraponto à vida isolada e bucólica do Sítio do Picapau Amarelo. Deixa-se levar pela imaginação da prima e tudo o que faz durante as aventuras é enfurecer-se com os perigos ameaçando-os com 'bodocadas', como no Vale do Paraíba eram apelidadas as 'estilingadas'. Como ele, todas e cada uma das personagens lobatianas são apenas coadjuvantes ou figurantes das fabulações dessa maravilhosa e apaixonante menininha".

No trecho o escritor acena para sua grande paixão. Não é de hoje que Bandeira coloca Narizinho ao lado de Capitu (de "Dom Casmurro", de Machado de Assis) como a grande personagem feminina da história da literatura brasileira. Defendendo seu argumento, ressalta que as ações de todos os outros personagens (inclusive a incensada Emília) só são possíveis graças ao universo criado por Narizinho em sua mente; um ambiente fantástico que acertadamente dispensa justificativas lógicas. "Ora, ora, a lógica na fantasia! Quem precisa disso?", questiona Bandeira, que explica por que admira tanto a garota:

"Narizinho é o protótipo perfeito de uma menina solitária de sete anos. Antecipando descobertas, hipóteses e descrições psicológicas que ainda viriam a ser escritas, muito antes de a psicologia mapear os cérebros infantis em seu desenvolvimento. Ele [Lobato] observou que essa é a idade da imaginação solitária, da criação ermitã de mundos maravilhosos, da busca do mágico, do fantástico, do fabuloso, do absoluto, é o momento em que se começa a aprender a ler e, genialmente, adivinhou que a menina traria para dentro de si (que é o espaço mágico do sítio) os personagens dos mundos de aventuras e dos contos de fada dos livros que agora é capaz de ler. Brilhante!"

Ainda que pesque cenas de histórias como "O Casamento de Narizinho", "Narizinho – A Menina Mais Querida do Brasil" segue o encadeamento das narrativas iniciais de "Reinações de Narizinho": "Narizinho Arrebitado" e "O Sítio do Picapau Amarelo" – os títulos dos capítulos, inclusive, são os mesmos até a nona parte, "As Formigas Ruivas", exceto por "A Pescaria" ter virado "A Pescaria de Emília". Daí para frente, as mudanças são mais incisivas. Não por acaso, essa ruptura acontece justamente quando, no original, chegamos ao capítulo "Pedrinho".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.