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Obscurantismo de Crivella contra Bienal é outro monstro da lama do WhatsApp

Rodrigo Casarin

10/09/2019 07h35

Passando a régua no movimento obscurantista de Marcelo Crivella, prefeito carioca, contra a Bienal do Livro do Rio, um dos eventos mais importantes da cidade, dois elementos me chamaram especial atenção.

O primeiro deles está na base de sustentação para os atos e o discurso de Crivella. Não é novidade que a homofobia é um traço bastante presente em nossa sociedade. Também não é novidade que muita gente acredita em qualquer porcaria que é compartilhada principalmente em mensagens de WhatsApp. Desta vez, no entanto, a tosquice atingiu um nível impressionante.

Gritando contra o já famoso beijo dos personagens de Vingadores, pais e mães compartilharam fotos indicando que trechos de "As Gémeas Marotas", de Brick Duna, fariam parte da HQ publicada pela Marvel/ Panini. Será que nenhuma dessas pessoas que espalhou e alardeou a notícia falsa notou que os traços de Duna e os traços da história dos heróis são um tanto diferentes? Ninguém notou que o encadeamento das narrativas não batem – um é um livro ilustrado, o outro traz quadros sequenciais? Não perceberam a linguagem completamente diferente? Não observaram que até o formato das páginas não é o mesmo? Para ser gentil com esse povo, digamos que tenha sido distração.

Só que desse povo distraído e virulento surge o absurdo máximo da história. Numa adaptação da notícia falsa original, a prefeitura do Rio de Janeiro foi à justiça contra a Bienal se queixando da venda do livro de Brick. Livro este que nunca ganhou edição no Brasil e jamais foi visto pelos corredores do Riocentro nesta ou em qualquer outra edição da Bienal. A canastrice é tão grande que as imagens que teoricamente embasariam a tese de Crivella e seus parceiros inquisidores mostram "As Gémeas Marotas" ao lado de objetos sendo vendidos em euros. Em minhas andanças por eventos literários, só vi objetos sendo vendidos em euros em encontros na Europa mesmo.

Difícil perceber de cara que um livro não tem nada a ver com o outro?

Não achemos que se trata de uma distração também do prefeito. Ele sabe muito bem o que está fazendo. O objetivo é acenar para os intolerantes, mostrar que estão juntos e, com isso, se fortalecer com essa turba. Se a notícia falsa nasceu nas correntes reacionárias da população, Crivella logo se apressou para abraçar a narrativa e se colocar do lado dos farsantes. O que importa não é a legislação, não é a verdade, não é a pluralidade, não é a sociedade, nada disso. É fincar posição nessa narrativa.

Estamos diante de mais um caso em que o lodo do mundo virtual impacta diretamente no mundo real. Saco aqui da minha pilha de desejáveis leituras o livro "O Povo Contra a Democracia – Por Que Nossa Liberdade Corre Perigo e Como Salvá-la", do cientista político alemão Yascha Mounk, publicado há pouco pela Companhia das Letras em tradução de Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg. A obra ainda merecerá uma atenção maior, mas miro o capítulo sobre o ambiente virtual para ver como o autor encara essa urgente questão.

Traçando um histórico do impacto das redes sociais na política, Yascha lembra que, no começo desta década, plataformas como o Twitter foram fundamentais para a derrubada de regimes totalitários (lembremos da Primavera Árabe, por exemplo). O momento era de esperança: pluralidade de vozes recém-empoderadas seria uma ameaça aos autoritários. Em poucos anos, porém, a percepção já era outra. Com usuários se confinando em bolhas e políticos inventando mentiras e oferecendo amplamente às hordas aquilo que elas gostariam de ouvir, qualquer sistema estabelecido passou a estar na berlinda.

Ao relembrar da ascensão de Donald Trump, o autor registra: "Muitas histórias inventadas e difundidas em portais como Vdare, InfoWars e American Renaissance eram tão forçosas ou escabrosas que ficava difícil entender como alguém podia acreditar nelas. 'Papa Francisco choca o mundo e declara apoio à candidatura de Donald Trump à presidência', alardeava certa manchete. 'Bomba: revelamos a rede satanista de Hillary Clinton', anunciava outra". A estratégia de determinados políticos passou a ser repetir mentiras exaustivamente até que ganhassem ares de verdade ao menos para a parcela mais radical – ou distraída, para ser novamente gentil com esse povo – de seu eleitorado. Crivella bancando a bizarra briga centralizada agora num livro português que jamais deu as caras na Bienal é, ao mesmo tempo, exemplo e consequência desse movimento que tem como grande representante no Brasil o tal "kit gay" – estrelado pela mamadeira de piroca -, farsa que convenceu 84% dos eleitores de Jair Bolsonaro.

Talvez por não viver numa surrealidade como a que vivemos, a visão de Yascha para a relação entre redes sociais e política é levemente positiva – ou não tão negativa como a minha ultimamente. Ele reafirma que, por um lado, a oposição democrática tem muito mais ferramentas hoje para derrubar ditadores do que outrora, mas também reconhece que "os mercadores do ódio e da mendacidade encontram muito mais facilidade para solapar as democracias liberais". Até aí, estamos de acordo.

Mais adiante o autor diz restar "pouca dúvida de que, no curto prazo – ou seja, pelo resto de nossas vidas – [a nova tecnologia] vai contribuir para o mundo mais caótico". Também lembra que "em anos recentes, foram os populistas que exploraram melhor a nova tecnologia para solapar os elementos básicos da democracia liberal. Desimpedidos das coibições do antigo sistema midiático, eles estão preparados para fazer tudo o que for necessário para serem eleitos – mentir, confundir e incitar o ódio contra os demais cidadãos". No final do capítulo, no entanto, a tentativa de alento:

"Assim como os ativistas pró-democracia que usaram as mídias sociais para derrubar ditadores subestimaram como seria difícil consolidar sua vitória, os populistas em ascensão talvez ainda venham a considerar o futuro tecnológico mais desafiador do que esperavam. 'O vencedor no momento, seja quem for', escreveu George Orwell, 'sempre vai parecer invencível'. Mas, depois que os populistas chegam ao poder e passam a quebrar as inúmeras promessas que fizeram, podem ser bruscamente lembrados do potencial das mídias sociais para empoderar os novos outsiders contra seu governo".

Errata: Diferente do que foi publicado inicialmente, a HQ em questão é sobre o Vingadores, e não Demolidores. A informação foi corrigida às 13h28.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.