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Fracassos e ideias revolucionárias marcam história da França na Amazônia

Rodrigo Casarin

28/08/2019 10h19

É René de Montbarrot quem recebe do rei francês, em 1603, o título de comandante-geral para o Amazonas e Trindad. Pouco depois, Daniel de La Touche, ou La Ravardière, ocupa a ilha do Maranhão e funda a cidade de São Luís – os franceses seriam expulsos pelos portugueses de lá em 1615. Já em 1624, um grupo de protestantes franceses é enviado para a floresta amazônica com o objetivo de espalhar colônias na costa da Guiana – desta vez, o problema maior não seria com os vizinhos europeus ou com outros invasores, mas com os próprios nativos. Ao longo do século 17, a França faria mais tentativas de controlar ao menos parcialmente a Amazônia, teria sucessivos fracassos até que conseguisse estabelecer um pequeno território, a Guiana Francesa.

Século mais tarde, por volta de 1809, enquanto Portugal tentava não sucumbir à França napoleônica, brasileiros saíram de Belém e ocuparam Caiena, a capital da Guiana Francesa. Ficaram com o lugar a seus pés até 1817. Só desocuparam a cidade após o Acordo de Paris. Ao voltar ao Brasil, os paraenses carregavam consigo não apenas uma parte da história, mas ideias que apavoravam a Coroa portuguesa:

"De volta à província, encontraram uma cidade em declínio, com uma economia estagnada, campo fértil para a proliferação de ideias revolucionárias que traziam na bagagem. Os franceses tinham estabelecido em Caiena, durante os anos da Revolução Francesa, uma oficina de impressão onde textos, documentos e panfletos revolucionários eram traduzidos para o português e contrabandeados para o Pará. As autoridades coloniais portuguesas eram tão paranoicas a respeito da revolução que, se alguém fosse flagrado em Belém, em 1800, guardando um exemplar da Declaração dos Direitos do Homem, receberia a pena sumária de prisão perpétua. Dezessete anos depois, jovens soldados, saboreando o gosto do triunfo militar, estavam voltando com verdadeiras bibliotecas revolucionárias", escreve Márcio Souza em "História da Amazônia – Do Período Pré-colombiano aos Desafios do Século XXI" (Record).

A Amazônia desejada pelos europeus (não só franceses, mas também espanhóis, ingleses, holandeses e, claro, portugueses) e servindo de porta de entrada para os ideais da Revolução Francesa, evento fundador da sociedade contemporânea, são aspectos que se destacam na leitura justamente – e obviamente – pela tensão política que temos vivido entre Brasil e França enquanto a floresta pega fogo. Apesar do reveses, o país de Macron também deixou influências significativas na região, tanto que duas das mais importantes cidades amazônicas receberam o apelido de "Paris dos Trópicos": Manaus e Belém.

A presença francesa na Amazônia não é o único elemento da obra que chama especial atenção neste momento, no entanto. Se as notícias de ataques contra os indígenas são muitas, vez ou outra também temos visto exemplos de resistência dos nativos. Daí que, com o livro em mãos, conheço os muras, povo que se rebelou contra os portugueses e se transformou em inspiração para indígenas de outras etnias.

"Eles tinham aprendido a não se apresentar de peito aberto contra as armas de fogo; organizavam rápidos ataques ou emboscadas e eram brilhantes arqueiros, arte que dominavam com criatividade, com a utilização de um grande arco que eles suportavam com os pés para lançar uma flecha capaz de atravessar um boi ou varar uma armadura metálica", registra Souza. O enfrentamento que seguiria ecoando ao longo da história em figuras como cacique Maroaga, um waimiri-atroari que não se curvou perante a matança de populações indígenas promovida pelos militares durante nossa última ditadura, momento da história que o autor define como "institucionalização do genocídio".

Grafite de Cranio.

"História da Amazônia" é uma ampliação de "Breve História da Amazônia", livro publicado originalmente pelo escritor em 1994. Autor de livros como "Amazônia Indígena", "Galvez, o Imperador do Acre" e de "Mad Maria", provavelmente sua obra mais famosa, Souza não é apenas um intelectual interessado pela floresta, mas alguém que a conhece de perto. Manauara, foi diretor de planejamento da Fundação Cultural do Amazonas e do Teatro Experimental do Sesc do Amazonas.

Fluída, a obra é dividida em tópicos breves que dão um bom panorama da trajetória da região. Se o leitor quiser extrapolar essa espécie de introdução e se aprofundar em alguma passagem, alguma questão ou algum período, no entanto, precisará recorrer a outras fontes. Sem megalomania, Souza assume que suas pretensões passam longe de querer esgotar o tema. Em um momento ou outro, surpreende a força de certas patadas – o escritor Silviano Santiago, por exemplo, toma uma traulitada por não ter dado a atenção que a região mereceria ao organizar a coleção "Interpretes do Brasil" (Nova Aguilar).

Mérito enorme do livro é trazer a história pela perspectiva de alguém que, de alguma forma, vive a Amazônia. É difícil levar a sério qualquer discussão sobre a floresta que não coloque os povos que já a habitavam antes da chegada dos europeus em uma posição central. Souza mostra como diversas sociedades com sistema político bem estabelecido, agricultura diversificada e intensivo sistema de produção de ferramentas e cerâmicas ocupavam o território muito antes do Brasil começar a ser esboçado. A floresta não era uma terra de ninguém, mas, há pouco mais de 500 anos, passou a ser um território em permanente conflito.

Mirando o que aconteceu na floresta entre os anos de 1965 e 2000, Souza afirma que "o que se vê é o autodenominado moderno Estado brasileiro, demonstrando diariamente a sua incapacidade em dar um basta em tantos absurdos, em impedir a deterioração do meio ambiente e barrar os projetos econômicos que tornam a vida de camponeses, índios e trabalhadores um exercício de horror". O problema segue o mesmo neste século 21. Fica o questionamento que o autor faz logo no começo da obra:

"De todas as afrontas que a Amazônia sofre, a mais escorregadia é exatamente a das opiniões apressadas. Ao mesmo tempo, é a mais simples de superar. O mesmo afã salvacionista pôs a Amazônia no centro do mercado capitalista, e tudo virou mercadoria. Como observou Chico Mendes, querem colocar uma etiqueta de preço em cada pedaço da região. No entanto, como pôr no mercado a identidade do povo da Amazônia, identidade que hoje não se dissocia da cultura e do processo histórico?"

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.