Topo

É benéfico termos felicidade como meta? Livro ajuda a refletir

Rodrigo Casarin

14/08/2019 10h04

Há tempos que Andréa Perdigão aposta em boas conversas para tentar entender melhor o mundo em que vivemos. Aos poucos, descobriu o imenso valor dos diálogos sinceros. Conversando com pessoas de ideias, personalidades e ocupações distintas, mas que admira, já tinha transformado seus papos em livros sobre o silêncio e o tempo.

Sua terceira obra nessa linha nasceu, de certa forma, no consultório onde trabalha. Formada em fonoaudiologia, há mais de 25 anos que Andréa ajuda pessoas a lidar com suas dores utilizando técnicas da eutonia. "Quando chegam ao meu consultório, elas simplesmente querem que eu faça milagres e as livre da dor o mais rápido possível. Compreendo o anseio de querer se ver livre da dor, mas poucos querem entender como construíram aquela dor através de longos períodos de desatenção, más posturas, às vezes excesso de exercícios ou maus hábitos. Não fomos ensinados e escutar o nosso próprio corpo", diz em entrevista ao blog.

Notou que o desejo de se livrar das dores era comumente acompanhado da vontade de que "a vida fosse bem diferente do que ela é, e que evitar a dor e buscar o prazer é o jeito como normalmente quase todos nós nos pegamos vivendo". Essa observação foi a chave para que voltasse seu interesse para dois novos temas: o corpo e a felicidade. "Foi tocando tantos corpos doloridos e machucados que desejei conversar também sobre felicidade. É um desejo legítimo o de se sentir feliz, mas considerar a felicidade uma meta será que não nos atrapalha mais do que ajuda?".

O resultado da investigação está em "O Dentro e o Fora – Conversas Sobre Corpo e Felicidade", publicado há poucas semanas pela Patuá. Dividida em dois volumes reunidos em um box, a obra é um painel de longas entrevistas – ou uma espécie de documentário, como a autora prefere definir – que trazem diferentes pontos de vista para seus temas centrais. Falando sobre o corpo, temos gente como a cartunista Laerte, a professora de dança e coreografa Cláudia Mello e a antropóloga especialista em violência de gênero Heloísa Buarque de Almeida. Já sobre a felicidade, destaques para Wellington Nogueira, fundador da ONG Doutores da Alegria no Brasil, a psicanalista Maria Rita Kehl, o filósofo Clóvis de Barros Filho, o escritor Valter Hugo Mãe e o negociador de paz estadunidense William Ury. Temos ainda a atriz Camila Pitanga dentre os poucos que abordam os dois temas em sua conversa com Andréa.

Laerte Coutinho por Rafael Roncato

Guerra e Laerte

Perguntada sobre quais pontos destacaria de suas conversas, Andréa diz ser difícil escolher um ou outro, mas indica a maior surpresa que teve. "Lourival Sant'Anna [jornalista que atua como correspondente de guerra] relatou um momento crucial, que praticamente deflagrou a guerra civil na Líbia", recorda (deixo o trecho no final do post). Olhando para as respostas de Lourival no papo sobre felicidade, temos um olhar realmente diferente para o assunto. Um exemplo:

"Não sou muito otimista com relação à vida 'nos tempos de paz', seja nos Estados Unidos, na Suécia, na Inglaterra, em qualquer lugar que você quiser; na Alemanha ou no Japão. No fundo, acho que a guerra é uma expressão mais visível do humano: é tudo mais óbvio, mais catalisado, mais acelerado; mas o humano é isso. Aquilo que se expressa na guerra, que são as relações de poder, se expressa dentro de casa, entre os pobres, entre os ricos, em todo lugar do mundo".

Já no volume sobre o corpo, uma das entrevistas essenciais é a de Laerte, quadrinista que, aos 57 anos, assumiu publicamente ser transgênero. Ela comenta sobre o momento de redescoberta: "Eu já estava com meus cinquenta e três, cinquenta e quatro anos, e tinha há pouco tempo desistido de bancar o heterossexual exclusivo. Resolvi reconhecer que gostava de sexo com homens, que essa ideia me atraía muito, e decidi tentar vencer o pânico de décadas que me fez esconder a homossexualidade o mais profundo que eu conseguia. Quando reconheci isso, não é que eu fiquei tranquila com a vivência homossexual, mas isso me trouxe uma paz; pelo menos deixou de ser um problema a ser escondido. E dentro desse estado de tranquilidade descobri a transgeneridade, que foi uma novidade para mim. Aceitar a homossexualidade depois de muitos anos foi um reconhecimento de questões afetivas que envolviam muito o corpo, o desejo, o modo de tocar e me relacionar sexualmente com outra pessoa".

Sexo e opressão

Numa obra preocupada com a felicidade e com o corpo, muitos poderiam imaginar que o sexo seria um assunto também constante. Não é o que ocorre. O tema até aparece em alguns momentos do volume destinado ao corpo, mas é artigo raro na parte dedicada à felicidade. Seria o sexo, então, algo que nos satisfaz fisicamente, mas que não impacta tanto assim em nossa felicidade? Andréa considera a questão tão fundamental quanto complexa. Pondera que "o sexo pode ser maravilhoso e nos encher de prazer, de amor e de vontade de viver a vida, mas ele também pode ser uma fonte de desprazer e uma profunda violência". Para ela, associá-lo à felicidade de forma inequívoca é algo no mínimo arriscado.

"Entre as várias ideias que nos são vendidas como verdades, está a hipervalorização do sexo. A felicidade pode nos vir por vários caminhos e o sexo é um deles, principalmente quando desejado e concedido por ambos os lados, fruto da reciprocidade. E aqui chegamos a uma questão que considero importantíssima em toda essa discussão: a minha felicidade inclui o outro? Sinceramente, para mim, a felicidade certamente pode ser vivida em momentos de solidão, mas a felicidade quando presente e se compartilhada com quem amamos é imbatível".

No sentido de encontrar a satisfação, Andréa aponta que os temas centrais de seu livro são assuntos que "podem nos oprimir muito" se passarmos a vida em busca de corpos perfeitos e de uma felicidade idealizada. "Só cuidamos do corpo para cuidar da sua forma, para ficarmos magros, parecermos mais jovens e gostosos. É a supremacia do fora, a imagem acima de tudo", diz, recordando da quantidade de pessoas que atende em seu consultório e são preocupadas com a estética, mas pouco ligam para os sinais de saúde e bem-estar dados pelo próprio corpo.

A autora argumenta que algo parecido ocorre com a felicidade. "Ela é considerada o desejo mais valioso, e receitas e mais receitas para alcançá-la são vendidas pelos mais variados meios de comunicação. Existe a ideia de que a felicidade é o que valida a nossa vida. 'O importante é ser feliz!' – quantas vezes não ouvimos ou não dissemos essa frase? Mas e se nesse momento da nossa vida as coisas estiverem difíceis? E quem diz que a felicidade é um alvo a ser alcançado se fizermos tudo direitinho? Sinto que a busca da felicidade como alvo supremo, (assim como a busca da magreza e da juventude) também pode nos atrapalhar quando não incluímos os sentimentos opostos à felicidade, como a tristeza, o medo, ou a insegurança. A imagem que queremos ostentar está tomando o lugar daquilo que de fato sentimos".

Guerra da Líbia

Leia o trecho da entrevista com Lourival Sant'Anna no qual ele fala sobre o início da Guerra da Líbia:

"Só existe guerra porque existe esperança, se não as pessoas entregariam as armas! Eu vejo na guerra muito amor porque muitas vezes se luta por algo que você não vai ver nem ter, a luta é por uma próxima geração, e isso é muito amor. E ali se está vivendo intensamente, não são pessoas depressivas que estão querendo morrer. A guerra é uma explosão de vitalidade. Em Benghazi, na Líbia, existia um impasse militar: os jovens estavam se manifestando por democracia e o máximo que eles faziam eram coquetéis molotov com gasolina ou dinamite. Eles colocavam numa garrafa e jogavam na catiba – catiba, em árabe é 'brigada' –, que era o quartel das forças do Kadafi em Benghazi. E, de lá de dentro, os soldados atiravam contra os jovens e todos os dias morriam dezenas deles. Na frente do quartel morava um homem que era um contador da empresa estatal de petróleo – a vida mais pacata que você possa imaginar – e tinha duas filhas gêmeas de dezesseis anos. Ele ajudava a retirar os corpos dos jovens e levar para o cemitério, e falava para a mulher dele: 'A gente não pode continuar assistindo isso de braços cruzados'. Ele morava no segundo andar de um predinho, e um dia a mulher dele o viu descendo a escada com dois botijões de gás. Ela achou que ele fosse comprar gás. Mas ele colocou os botijões no porta-malas do carro, que ele tinha enchido de dinamite. E então acelerou em direção ao portão principal da catiba, deu tchau, fez o 'V' da vitória para os jovens, que já o conheciam, foi cruzando a rua, acelerou com tudo, arrebentou o portão e explodiu. Ele morreu, mas os jovens entraram, os soldados ficaram aturdidos, saíram correndo, e os jovens pegaram as armas. Foi a primeira vez que os manifestantes tiveram armas. A partir daí virou uma guerra civil, até então eram só manifestantes morrendo. Com armas em mão, eles tomaram bases do exército, houve também adesão, deserção. Por causa desse homem, a partir desse momento começou a revolução. Há vários raps falando dele, músicas líbias o celebrando como herói, porque isso foi muito inspirador".

Você pode me acompanhar também pelo Twitter, pelo Facebook e pelo Instagram.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.