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Mirando ascensão de Hitler, livro diz muito sobre sucesso de trogloditas

Rodrigo Casarin

30/07/2019 10h09

"Nunca se cai duas vezes no mesmo abismo. Mas se cai sempre da mesma maneira, em uma mistura de ridículo e terror. E deseja-se tanto não cair de novo que se escora, berrando. Com os calcanhares, nos quebram os dedos, com os bicos nos arrebentam os dentes, roem-nos os olhos. O abismo é cercado de mansões. E a História está lá, deusa razoável, estátua colocada no meio da place des Fêtes, recebendo como tributo, uma vez por ano, buquês secos de peônias e, à guisa de esmola, todos os dias, pão para os passarinhos".

No dia 20 de fevereiro de 1933, Adolf Hitler, recém-nomeado chanceler alemão, reuniu-se com 24 líderes das maiores empresas do país. Diante de uma grande crise e com a promessa autoritárias, convenceu que organizações como Bayer, BMW, IG Farben, Shell, Allianz, Schneider, Telefunken e Siemens abrissem a carteira e enchessem os cofres do partido nazista. "O cerne da proposta se resumia a isto: era preciso acabar com um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e permitir que cada patrão fosse um Führer em sua empresa". Aquele momento foi decisivo para que os nazistas triunfassem nas eleições que aconteceriam dali a poucos meses. Tivessem os empresários dito não a Hitler, talvez a história da humanidade fosse outra.

Ao estudarmos nossas vergonhas, é fundamental prestarmos muita atenção em como os piores momentos foram arquitetados. Se há chance de aprendermos algo com nosso passado (ideia cada vez mais capenga), é imprescindível que saibamos detectar no presente sinais que possam se relacionar com eventos que precederam e alicerçaram aquilo que hoje repudiamos. Se há perseguição a certas pessoas incentivada por mandatários e, um passo além, se o campo de concentração e extermínio chega a ser instalado, é sinal de que falhamos – por favor, encare os descalabros de Hitler como uma metáfora para a capacidade de destruição que malucos adquirem quando alcançam cargos de alto poder e possuem a estrutura estatal em mãos. Quando algo nessa linha ocorre, é sinal de que, como sociedade, não freamos certos trogloditas antes da consumação da carnificina. "Frequentemente, as maiores catástrofes se anunciam aos poucos".

Escrevo isso para indicar a leitura de "A Ordem do Dia", do escritor e cineasta francês Éric Vuillard, obra que ganhou o badalado Goncourt em 2017, já vendeu mais de meio milhão de exemplares pelo mundo, foi negociada com 30 países e que acaba de sair no Brasil pela Tusquets em tradução de Sandra Stroparo – do livro que retirei as aspas acima. Ainda que com uma pitada de delírio, trata-se de um romance profundamente apegado a passagens reais, em especial duas delas: os bastidores da anexação da Áustria pela Alemanha, em março de 1938, e a já citada reunião entre Hitler e os grandes empresários.

O episódio de 1933 me parece mais importante por seu fator seminal, mas é o segundo, pela quantidade de agentes, movimentações de bastidores e desdobramentos imediatos, que ocupa a maior parte do livro. Explorando os dois momentos separados por pouco mais de cinco anos e, ao cabo, diretamente relacionados, Vuillard trata de muitos elementos que fizeram parte da ascensão do nazismo: encontros secretos, interesses escusos, blefes, manipulação das informações, adesão das massas (ou uma propagandeada adesão das massas), o sufocamento da resistência… Pincela também a indiferença geral enquanto membros de determinados grupos ou comunidades são espancados, presos e torturados, enquanto o totalitarismo relincha, dá coice e mata ali na esquina. Precisamos sempre lembrar que Hitler só fez tudo o que fez com a cumplicidade e o apoio de muita gente (dentre eles os omissos, o povo do "não é comigo" ou do "mas a economia…").

Seja em construções mais longas, seja pela maneira como escolheu para conduzir a narrativa, em diversos momentos não entendemos muito bem os caminhos escolhidos por Vuillard e acabamos surpreendidos. De cara temos a impressão de que o autor está prestes a se perder, mas não é o caso. Ele está, isso sim, nos levando por veredas pouco óbvias, nos colocando, por exemplo, inesperadamente para rir ao mostrar Hitler num carro empacado por conta da pane em tanques de guerra alemães que travam a estrada que o levaria até sua apoteose austríaca:

"Não eram apenas alguns tanques isolados que acabavam de enguiçar, não era só um blindadinho aqui e outro lá, não. Era a imensa maioria da grande armada alemã; e a estrada estava agora completamente bloqueada. Ah! Parecia um filme de comédia: um Führer ébrio de cólera, mecânicos correndo pela pista, ordens gritadas às pressas na língua rude e febril do Terceiro Reich. E depois, um exército, quando se precipita sobre você, quando desfila a trinta e cinco por hora sob o sol forte, dá um frio na barriga. Mas um exército em pane não é nada. Um exército em pane é absolutamente ridículo. O general levou a maior bronca! Berros, injúrias; Hitler o tomou por responsável pelo fiasco. Foi preciso retirar os veículos pesados, rebocar alguns tanques, empurrar alguns automóveis, para deixar passar o Führer. Ele chegou a Linz, enfim, já à noite".

Com um olhar atento para as sutilezas da história e para os momentos aparentemente corriqueiros no jogo político, mas que descambaram numa enorme tragédia para milhões de seres humanos – e para toda nossa espécie, por extensão –, Vuillard nos entrega um instigante olhar sobre a ascensão do nazismo. Também nos faz refletir muito sobre o crescimento do totalitarismo em nossos dias, com trogloditas, financiados pelos donos de grandes fortunas, sendo aplaudidos e apoiados por multidões.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.