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Martha Medeiros: “Não parecemos uma nação, e sim uma torcida organizada”

Rodrigo Casarin

04/06/2019 10h42

"É um número assombroso, nem eu consigo entender. Uma vez recebi um elogio bacana do escritor Dionísio da Silva: 'A gente nunca sai de mãos abanando de um texto teu'. É uma pista. Trato sobre temas profundos de uma forma clara e positiva, o leitor consegue se reconhecer no que está escrito, se envolve, se emociona. Pelo feedback que recebo, acho que é isso, eu consigo me comunicar fácil com as questões internas de quem me lê. Não é incomum terapeutas dizerem que usam meus textos no consultório, com seus pacientes. Acho ótimo, só que é totalmente involuntário, na verdade escrevo pra mim mesma, pra tentar organizar, em palavras, o caos que existe lá fora e também dentro da gente".

É dessa forma que a escritora Martha Medeiros, 57 anos, encara o fato de já ter vendido mais de um milhão de exemplares, baita feito num país onde autores e editoras comemoram quando tiragens de dois ou três mil livros se esgotam. Poeta que estreou em 1985 com "Strip-Tease", publicado pela Brasiliense, foi incensada no início da carreira por nomes como Caio Fernando Abreu – que destacou a forma como ela "passeia pelas carências, relações e fantasias de um momento histórico" – e Millôr Fernandes – para quem Martha apresentava talento para dar forma às "impressões existenciais, pessoais, sentimentos que às vezes nem se realizam senão no ato da apreensão, e crescem no ato do registro".

Como romancista, o debute aconteceria somente em 2002, com "Divã" (L&PM), um grande sucesso. Entre a poesia e o romance, se encontrou escrevendo crônicas a partir de 1994, quando recebeu um convite do jornal gaúcho "Zero Hora", que segue como uma de suas casas. Apostando em textos intimistas, com abordagem bastante pessoal e que tratam principalmente de questões caras ao universo feminino, Martha conseguiu alcançar e fidelizar uma legião de fãs. Para comemorar os 25 anos como cronista, lança agora, pela Planeta, "O Meu Melhor", coletânea que reúne 100 de suas crônicas preferidas e outras quatro que permaneciam inéditas até então – "A Escolhida", "Adeus à Dor", "Medo de Intimidade" e "A Sério".

Previsivelmente, a escritora diz não ter sido fácil escolher por uma centena de textos entre os mais de dois mil que já escreveu. "Procurei reunir aqueles que os leitores mais gostam, os que circularam com autoria trocada (a fim de esclarecer a autoria correta), os que não ficaram datados, os que são intimamente significativos pra mim e textos que funcionem também em Portugal, onde o livro será lançado no segundo semestre", explica.

Sobre as trocas, um caso que destaca é o da crônica "A Morte Devagar", que, traduzida para o espanhol, circulou pela internet com o título "Muere Lentamente" e autoria atribuída ao poeta chileno Pablo Neruda, Nobel de Literatura de 1971. "No começo, me incomodava com essas adulterações, mas acabou rendendo algumas histórias divertidas e hoje já não me estresso", diz Martha.

Olhando para a carreira, a escritora aponta como seu primeiro momento "uau" o lançamento de "Trem-Bala" (L&PM), em 1999, que se tornou um dos livros mais vendidos do ano e foi levado para os teatros de Porto Alegre por uma trupe local. Três anos depois, com o lançamento de "Divã", um novo marco, este ainda maior: o romance não se tornou apenas best-seller, mas também foi adaptado para o teatro e para o cinema, com a atriz Lilia Cabral interpretando Mercedes, a protagonista envolta em questões psicanalíticas. "Feliz Por Nada" (L&PM), de 2011, mais uma coleção de crônicas, também se destaca na produção da autora, sendo um de seus livros mais vendidos e conhecidos – já superou as 60 edições.

Fazendo um paralelo entre a Martha de hoje e a Martha de duas décadas e meia atrás, quando estreou na crônica, a autora diz que a principal mudança não se deu no seu estilo de escrita ou na maneira como encara o mundo, mas na tecnologia e em como isso impacta em seu trabalho. "Meus primeiros textos foram escritos numa máquina de escrever elétrica e os leitores ainda mandavam cartas manuscritas para a redação, imagina", recorda.

"De repente, tudo se tornou mais rápido, as relações se dinamizaram, a vida de todos nós ficou mais exposta, o intimismo virou algo raro. Eu me adaptei às circunstâncias práticas, mas o conteúdo dos meus textos não sofreu tanta influência: continuo me dedicando às relações humanas, às nossas contradições, à nossa busca por uma satisfação afetiva, às maneiras de lidar com as convulsões emocionais. Tento divulgar um lado mais simplificado e menos catastrófico do cotidiano".

A respeito dos textos em si, diz que alguns deles não lhe representam mais. "Já não concordo comigo mesma, mas tudo dentro da previsibilidade, em se tratando de uma carreira longa". Apesar de, eventualmente, ter vontade de fazer uma revisão dessas peças, descarta essa possibilidade. "É preciso aceitar que estamos em movimento, em evolução, não dá pra ficar se passando a limpo o tempo todo. O que importa é que não há constrangimento, tudo foi escrito com muita honestidade e sigo em frente, com acertos e erros novos".

Apesar de a preferência por lidar com questões pessoais, na segunda metade de 2018 a autora notou que era hora de entrar num tema muitas vezes espinhoso, ainda mais num momento de forte polarização: a política. Engajou-se na campanha #elenão, contra Jair Bolsonaro, e assume ter ficado assustada quando notou que o atual presidente poderia, de fato, ser eleito.

"Não há o que justifique votar numa pessoa que homenageia torturador. Ali ele mostrou quem era em essência, foi gravíssimo. Bastaria isso pra me indignar, mas houve mais: declarações desabonadoras sobre homossexuais e mulheres, orgulho do próprio despreparo, desprezo à arte, nenhuma prestação de serviço ao país no longo tempo em que foi deputado. Pra mim, que prezo as pautas humanistas, me parece um desvario ele ser presidente da maior nação da América Latina, mas agora está feito, ele está aí cumprindo o que prometeu em campanha, Bolsonaro sendo Bolsonaro", avalia.

Passadas as eleições, hoje, em termos políticos, Martha se preocupa principalmente com a polarização que permanece no país. Em recente coluna publicada n'O Globo, escreveu que as turmas do #elenão e do #elesim precisam conversar e se entender. Incomoda-se sobretudo com o tom usado nas redes sociais, onde enxerga soberba tanto da direita quando da esquerda, com muitas acusações, mas nenhuma autocrítica. "O fato de eu não apostar no presidente não me impede de dar a ele o reconhecimento por algo de bom que vier a fazer pelo país – se fizer. Ninguém é totalmente bandido ou mocinho. Mas é assim que estamos vivendo, em clima de faroeste. Acho infantil. Imaturo".

Usa como exemplo dessa falta de austeridade a maneira como o ex-presidente Lula é tratado, quase sempre com endeusamento ou demonização. "Lula foi ótimo para o Brasil e foi péssimo para o Brasil. Alguém discute essa dicotomia? Faz um balanço equilibrado? Não. É amor ou ódio", comenta. "Não parecemos uma nação, e sim uma torcida organizada. Nossa classe política, salvo raras exceções, é composta por interesseiros deslumbrados pelo poder, mas de onde eles vieram? Não foi de outro planeta, são homens e mulheres representativos da nossa sociedade, desse povo que se considera especial, eleito por Deus. Quem entre nós se declara imperfeito, quem assume os próprios erros, quem tem a humildade de dizer 'não sei'?".

E o que pode ser feito a respeito disso? Não por acaso, a saída vislumbrada pode exigiria um gigantesco divã. "É utópico, mas acho que está na hora de olharmos para o próprio umbigo e tentar uma terapia em grupo, pra ver se a gente amadurece".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.