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Repulsa e reverência: antes de amá-lo, Drummond apedrejou Machado de Assis

Rodrigo Casarin

29/05/2019 10h29

Carlos Drummond de Andrade tinha 22 anos quando, em 1925, escreveu o artigo "Sobre a Tradição em Literatura", publicado n'A Revista, de Belo Horizonte. Com a arrogância típica dos jovens, apontou a caneta contra Machado de Assis. Arremessando pedra e relativizando a importância dos clássicos, acusou o autor de "Dom Casmurro" de ser um romancista "tão curioso e, ao cabo, tão monótono", dono de uma obra clássica, "porém sem nenhum classicismo autêntico".

Não satisfeito, Drummond disparou uma profecia pra lá de furada: "O escritor mais fino do Brasil será o menos representativo de todos. Nossa alma em contínua efervescência não está em comunhão com sua alma hipercivilizada. Uma barreira infinita nos separa do criador de Brás Cubas. Respeitamos a sua probidade intelectual, mas desdenhamos a sua falsa lição. E é inútil acrescentar que temos razão: a razão está sempre com a mocidade".

Machado monótono? Machado como escritor menos representativo de todos? Razão sempre com a mocidade? É bom saber que um intelectual do quilate do mineiro de Itabira também já escreveu bobagens colossais. Em todo caso, é curioso notar que, durante o achincalhamento, Drummond dá indícios de sua admiração pelo próprio bruxo do Cosme Velho (apesar de conter certa ironia, apontá-lo como "escritor mais fino do Brasil" deixa transparecer esse reconhecimento).

Essa rusga do autor de "A Rosa do Povo", "Sentimento do Mundo" e "Claro Enigma" com o colega carioca ainda duraria algum tempo, mas com o tempo se transformaria em admiração. É isso que mostram os artigos e notas reunidos pelo Hélio de Seixas Guimarães, pesquisador e professor livre-docente na USP, no cativante "Amor Nenhum Dispensa uma Gota de Ácido – Escritos de Carlos Drummond de Andrade Sobre Machado de Assis" (Três Estrelas).

Antes do amor, o ácido em mais algumas estocadas contra os clássicos. Em "T'aí!", também de 1925, Drummond defende que o modernismo brasileiro deveria deixar de respeitar o peso da tradição. "Não posso negar o passado: um enforcado não pode negar a corda que lhe aperte o pescoço. Mas tenho o direito de declarar que a corda está apertando demais, puxa! E que o melhor é cortá-la duma vez. A boa gente do passadismo não deixa a tradição descansar… É tradição pr'aqui, tradição pr'acolá…", argumenta, para depois alegar que nomes como Shakespeare, Dante e Goethe só se tornaram gênios justamente porque "desrespeitaram a tradição, tiveram a coragem bonita de espirrar com o próprio nariz!". Na sequência, ainda chama de "hipócrita" o leitor que enumera nomes como esses para arquitetar uma defesa do tradicional.

Brigando pela liberdade criativa dos pares de sua época, que não deveriam se preocupar demais em seguir linhagens literárias já estabelecidas, Drummond debate-se contra a tradição e, por extensão, contra a visão a respeito do próprio Machado. No entanto, mais maduro, muda o tom com relação ao bruxo e passa a reconhecê-lo como "nossa figura máxima". Num elogio que evidencia essa conflituosa relação que nutre, escreve em artigo de 1950:

"O autor de 'Quincas Borba' peca por esse vício inicial de escrever bem, bem demais, excessivamente bem. Não é recomendável que se institua um modelo dessa ordem, num país ainda novo, que deve cultivar sobretudo as suas forças primitivas e cósmicas". Exemplo máximo da reverência escancarada, não mais conflituosa, está em "A Um Bruxo, Com Amor", publicado no Correio da Manhã de 1958, poema no qual o Drummond apoia-se em escritos do próprio Machado. Nele, o mineiro enaltece o mestre: "Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro". E continua: "Onde o diabo joga dama com o destino,/ estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,/ que revolves em mim tantos enigmas".

Ao longo dos escritos reunidos no volume organizado por Guimarães, Drummond ainda demonstra um particular interesse pela carreira de burocrata do colega – o poeta mineiro também foi um burocrata, não custa lembrar – e encampa a briga contra a transferência do corpo de Machado e Carolina, sua esposa, do cemitério onde tinham sido enterrados para a sede da Academia Brasileira de Letras (ABL). Nesses momentos, transparece um discurso que soa oportuno ainda hoje. "E o que faria d. Carolina de Assis nesse panteão privativo de acadêmicos, ela que nunca pertenceu à Academia, a qual por sua vez jamais admitiu mulheres em suas poltronas?", questiona em artigo de 1958. Ainda sobre a companheira de Machado e a ABL, volta ao tema em no ano seguinte, quando lembra que Carolina "não foi acadêmica, nem podia sê-lo, pois a corporação é misógina".

Drummond morreu em agosto de 1987. Já no final da vida, em um breve fragmento de 1986 no qual comenta a sua formação de leitor, aproveitou para admitir as rusgas de outrora com o autor que tanto admirou: "Cheguei cedinho a Machado de Assis. Deste não me separaria nunca, embora vez ou outra lhe tenha feito umas má-criações. Justifico-me: amor nenhum dispensa uma gota de ácido. É mesmo o sinal menos que prova, pela insignificância e transitoriedade, a grandeza do sinal mais. Se me derem Machado na tal ilha deserta, estou satisfeito: o resto que se dane, embora o resto seja tanta coisa amorável".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.