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Ele passou 30 anos no corredor da morte, mas conseguiu provar sua inocência

Rodrigo Casarin

03/05/2019 10h36

"Havia morte e fantasmas por toda a parte. O corredor era assombrado pelos homens que haviam morrido na cadeira elétrica. Era assombrado pelos homens que haviam preferido se matar antes de serem mortos. Seu sangue fluíra pelas rachaduras do cimento como um rio lento, até secar e depois desgrudar sob o peso das criaturas que se arrastavam por cima dele à noite. As baratas tinham sangue nelas, e o carregavam de uma cela a outra. Os ratos mordiscavam o sangue coagulado e o traziam de volta pelas paredes e fendas, onde suas partículas circulavam no ar como poeira escurecida e se assentavam sobre nós todos. Era difícil se enforcar no corredor da morte, mas era fácil bater a própria cabeça contra a parede de cimento, várias vezes, até arrebentá-la, respingar a cela de vermelho e fazer seus miolos preencherem as fendas e pequenos orifícios como massa corrida".

Anthony Ray Hinton foi preso no dia 31 de julho de 1985, enquanto aparava a grama do jardim da casa de sua mãe, no Alabama. A acusação? Seria o responsável por dois assaltos e um assassinato. Não adiantou provar que pegava no batente em um armazém quando um dos crimes ocorreu, a mais de 20 quilômetros de distância de onde trabalhava. Também não adiantou um teste de polígrafo apontar que não mentia ao se dizer inocente. Mesmo as palavras do responsável pelo teste – "Eu faço isso há 27 anos, e já vi um monte de assassinos. Ele não é assassino", cravou o profissional – não tiveram peso algum. A impressão é que o homem, então com 29 anos, já estava condenado ao corredor da morte assim que os policiais o avistaram com o cortador de grama em mãos, num novo episódio do histórico de racismo e segregação que marca especialmente o sul dos Estados Unidos.

"Meu único crime era ter nascido negro, ou ter nascido negro no Alabama. Para onde eu olhasse no tribunal, via rostos brancos – um mar de rostos brancos. Paredes brancas, mobília branca e rostos brancos", relata Hinton ao recordar do seu primeiro julgamento. "A justiça é uma coisa engraçada, e no Alabama a justiça não é cega. Ela sabe qual é a cor da sua pele, qual é o seu grau de instrução, e quanto dinheiro você tem no banco. Eu podia não ter dinheiro nenhum, mas tinha instrução suficiente para entender muito bem como a justiça estava operando naquele julgamento e qual seria exatamente seu desfecho", prossegue.

As declarações estão em "O Sol Ainda Brilha" (Vestígio), livro no qual Hinton, em parceria com a escritora Lara Love Hardin, relata sua injusta prisão, as décadas que passou no corredor da morte e a luta para que, enfim, conseguisse comprovar sua inocência. Recém-lançada no Brasil, a obra é previsivelmente pontuada por momentos de superação e flertes com a autoajuda (a importância de manter o foco diante da adversidade, de segurar as pontas da mente, do perdão, da amizade, da fé…), mas é também um relevante registro a respeito da falibilidade da justiça e de quão questionável é a punição fatal. Não bastasse ser moralmente discutível, a pena de morte ainda acaba com a vida de diversos inocentes: segundo estatísticas de 2014, mais de 4% dos encarcerados no corredor da morte costumam pagar por algo que jamais cometerem.

Trazendo a obra para a realidade brasileira, num país com justiça arbitrária, numa época em que cada vez mais gente vomita que "bandido bom é bandido morto" e que se debate a própria regulamentação da pena de morte (que, na prática, já existe principalmente em nossas favelas e periferias), um título como "O Sol Ainda Brilha" se torna importante também para as discussões da nossa sociedade.

"Era como se a pena de morte fosse uma doença contagiosa e todo mundo achasse que poderia pegá-la de mim. Eu estava ainda em choque, e podia sentir a raiva borbulhando sob a superfície. Eu era agora o pior dos piores. Um humano impróprio para vida. Um filho de Deus condenado a morrer", recorda Hinton, um dos raros presos a conseguir corrigir a injustiça do sistema e reverter seu quadro. Analisando as supostas provas que levaram o homem a ser condenado, advogados notaram que aquilo que a justiça do Alabama considerava evidências sólidas ou provas irrefutáveis não se sustentavam de maneira alguma – em certo momento, 31 razões foram listadas para que tentasse um novo julgamento, elencando dezenas de falhas e questionamentos sobre todo o processo.

"Que tipo de mundo era aquele em que um homem inocente podia perder dezesseis anos da vida e em que se considerava perda de tempo deixá-lo provar sua inocência? Meus dezesseis anos eram menos importantes do que dois ou três dias do tempo do procurador-geral?", indaga Hinton ao recordar de quando, em 2002, soube de todos os problemas que envolviam o seu processo, que, ainda assim, não era revisto. "Para mim não era surpresa que o estado fizesse o possível para me manter trancafiado e em silêncio. A corte vinha fazendo isso desde o início. Ainda se tratava de um linchamento. Estavam demorando décadas para ajustar o nó no meu pescoço. Eu também não era ingênuo. O estado não se dispunha a admitir que havia cometido um erro. O estado do Alabama preferia continuar no erro do que admitir que havia errado; preferia aceitar a injustiça a admitir ter sido injusto".

O caso só seria reaberto depois que o advogado Bryan Stevenson tomou para si a causa de Hinton. "[Ele] resistiu intensamente à ideia de que havia sido detido, acusado e condenado injustamente por causa de sua raça, mas acabou não tendo como aceitar outra explicação. Era um homem pobre num sistema de justiça criminal que trata você melhor se você é rico e culpado do que se for pobre e inocente", escreve Stevenson no prefácio da obra.

Apenas em abril de 2015 que o condenado viu sua inocência ser comprovada e pôde retomar a liberdade. Ao longo de quase 30 anos, por uma levianidade da justiça, uma falha – ou sacanagem mesmo – do sistema, Hinton passou boa parte da sua vida numa cela de 1,5 por 2 metros, praticamente ao lado da câmara de execução, para onde viu 54 homens sendo levados ao longo do período em que esteve equivocadamente detido. Quantas dessas 54 pessoas assassinadas pelo Estado norte-americano não eram também inocentes? Impossível saber.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.