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Se um Hitler estivesse entre nós, seria apenas mais um maluco solto por aí?

Rodrigo Casarin

02/05/2019 10h31

Esqueça Adolf Hitler com poder absoluto e sangue de milhões de mortos nas mãos e mire no processo de ascensão do nazista. Foquemos na prevenção. Se fosse hoje, você acha que o homem do bigodinho ridículo que apresentou a base de suas ideias nefastas em "Minha Luta" e discursava contra minorias em cervejarias de Munique seria prontamente combatido, idolatrado ou somente ignorado? É impossível cravar, entretanto, tendo em vista a ascensão da extrema direita pelo mundo, é provável que a reação do público oscilasse entre a opção dois e a opção três – ou talvez começasse pela terceira, mas aos poucos involuísse para a segunda.

"Ele Está de Volta", filme de David Wnendt, fez uma sátira e colocou Hitler para passear por uma Alemanha contemporânea que recebe o monstro como se fosse uma estrela pop. Só que não é pelo filme que a suposição me veio à cabeça, mas por conta da HQ "Eu Matei Adolf Hitler", de Jason, que acaba de sair no Brasil pela Mino – na França, país de origem do quadrinho, ele foi lançado em 2006, dois anos antes de ganhar um dos troféus do Prêmio Eisner.

A história se passa num lugar onde a profissão de matador de aluguel é regulamentada. Então, um cientista contrata um desses assassinos para entrar numa máquina do tempo, regressar à Alemanha dominada pelos nazistas e acabar com a vida do carniceiro, evitando assim as grandes barbáries daquele tempo. Obviamente as coisas não saem como o planejado. Hitler sobrevive ao ataque, vai ver do que se trata a máquina do tempo e acaba viajando para o futuro, direto para a sociedade onde o assassinato está liberado.

Sobre a matança regulamentada, um ponto me chamou muito a atenção. Na realidade da HQ, pessoas encomendam assassinatos por qualquer motivo banal. Crise com a esposa? Manda matar. Problemas com a herança? Manda matar. Chefe sacana? Manda matar. Fim do namoro? Manda matar. Nesse canto onde se aniquila com imensa facilidade, em certo momento uma das personagens conversa com o matador de aluguel central da história e diz: "Tem noção de quantas pessoas já matou? Cem? Duzentas?". Dei uma risada que não deveria dar.

É claro que precisamos levar em conta que num lugar onde a profissão é legalizada, há a concorrência de outros matadores brigando – talvez matando – pela clientela. Só que eu ri porque os números já expressivos cogitados pela personagem são massacrados pela nossa realidade. Se o homem do gatilho da HQ matou cem, duzentos, Júlio Santana, que fez carreira de matador atuando principalmente no norte do país, contabilizou 492 execuções em sua caderneta, tornando-se o maior assassino de aluguel que se tem notícias pelo mundo – sua história está contada em "O Nome da Morte", de Klester Cavalcanti (Planeta). Mesmo usando a imaginação, é difícil desbancar a não ficção brasileira quando o assunto é carnificina.

E se Hitler viesse parar aqui? Bem, talvez tivéssemos algo muito parecido com o que vemos em uma das tecituras da HQ: uma vida insuportavelmente normal que segue em frente apesar do monstro solto pelo país. Aliás, talvez até já tenhamos um monstro maluco afim por aí em ascensão para chamar de nosso, vai saber…

Veja algumas páginas de "Eu Matei Adolf Hitler" (clique nas imagens para ampliá-las):

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.