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Pepetela: “As pessoas de esquerda têm uma enorme capacidade de se desunir”

Rodrigo Casarin

12/03/2019 10h48

Um pastor-alemão perambula pelas ruas de Luanda da década de 1980. Encontra-se com poetas, funcionários públicos, prostitutas, mecânicos… Também se mete no meio de passeatas e invade reuniões de sindicatos. Suas andanças pela capital revelam a Angola pós-independência, conquistada oficialmente em 1975. O cachorro é o personagem que conecta as histórias de "O Cão e os Caluandas", livro de Pepetela publicado originalmente em 1985 e que só agora chega ao Brasil graças à editora Kapulana.

"Na época, tinha muitas responsabilidades e nunca sabia se poderia continuar a escrever no dia seguinte. Ou no mês seguinte. Daí ter escolhido os contos pequenos ou crónicas ou outros instrumentos narrativos, que não exigissem o mesmo estilo. Para esconder a falta de continuidade no tempo. Precisava de um elemento de ligação, no entanto. Nada melhor que um cão. Sempre gostei cães dessa raça, muito fiéis", recorda Pepetela na entrevista abaixo – foi uma exigência sua que a ortografia do português praticado em Angola fosse mantida.

Pepetela, 77 anos, é um dos escritores africanos mais importantes de sua geração, autor de obras como "Mayombe" e "Predadores". Nasceu em Angola, fez faculdade em Lisboa e em 1962 rumou para Paris e, logo depois, para a Argélia, onde se formou em Sociologia e começou a atuar no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Entre o final dos anos 1960 e o começo dos 1970, entrou para a guerrilha e lutou pela independência de seu país, onde ocuparia cargos como a direção do Departamento de Educação e Cultura e o vice-ministério da Educação. Professor acadêmico, articulou organizações de intelectuais e escritores. Com uma trajetória profundamente ligada às ideias da esquerda, na conversa abaixo Pepetela também comenta o momento de acirramento ideológico vivido em boa parte do mundo:

"As pessoas de esquerda têm uma enorme capacidade de se desunir. E por vezes têm a arrogância de considerar que só a sua verdade é A Verdade. O que permite que os verdadeiros opositores se unam e ganhem força, como actualmente acontece com a extrema-direita, a qual só tem apoio porque aparenta opor-se à ideia de esquerda que a própria esquerda deixou se instalar na cabeça das pessoas. Mas a extrema-direita nunca consegue mascarar durante muito tempo os seus verdadeiros propósitos".

Como surgiu a ideia de explorar a realidade angolana de meados da década de 1980 a partir das andanças de um pastor-alemão? Algum motivo específico para ter escolhido essa raça?

Na época, tinha muitas responsabilidades e nunca sabia se poderia continuar a escrever no dia seguinte. Ou no mês seguinte. Daí ter escolhido os contos pequenos ou crónicas ou outros instrumentos narrativos, que não exigissem o mesmo estilo. Para esconder a falta de continuidade no tempo. Precisava de um elemento de ligação, no entanto. Nada melhor que um cão. Sempre gostei cães dessa raça, muito fiéis.

Em algumas realidades, há sociedades com camadas tão distantes umas das outras que somente um animal pode transitar entre elas e, de alguma forma, servir de ponte entre esses mundos?

Poderia ter sido outra coisa diferente, um feitiço por exemplo. Mas me inclinei para o cão.

"Filho de cão racista é racista. Esse cão tem o vírus do ódio ao negro, da desconfiança ao mulato, do respeito ao branco. E de vírus percebo eu, tenho obrigação. Não há educação que lhe chegue, vai morrer racista". Aqui o personagem fala especificamente do cão, mas poderíamos encarar esse trecho como uma metáfora. Há males que não podem ser contornados pela educação?

É uma metáfora mesmo do que sempre senti na sociedade colonial e na pós-colonial que se anunciava. "Filho de cobra é cobra" é uma expressão recorrente.

Olhando para aquela realidade e para a de hoje, o que mudou na sociedade angolana?

Os personagens principais mudaram radicalmente, pelo menos os que estavam no fundo da escala social ascenderam a uma identidade, uma personalidade com auto-estima e com poder. Foi para isso que lutámos pela independência. Para o poder passar para a maioria. Mas, entretanto, as diferenciações sociais também se estabeleceram muito claramente entre os antes explorados que ascenderam ao poder político e económico e a grande maioria que ainda se mantém na precariedade da existência.

Você participou ativamente do processo de independência de Angola e, na sequência, dos primeiros governos do país. O que guarda com carinho daquela época? E o que, com a perspectiva de hoje, teria feito de diferente?

Nos primeiros tempos, tínhamos uma elite de dirigentes e quadros que acreditavam mesmo em mudar a sociedade e criar um país livre e sem grandes distinções sociais. Era o nosso objectivo e trabalhámos com toda a vontade e coragem. Essa foi uma recordação boa, o entusiasmo nas tarefas, acreditar que se fazia o que tinha de ser feito. Mas cometemos muitos erros, acreditámos em ideias que não tinham adaptação possível à nossa realidade. Isso devia ter sido feito de forma diferente.

Sendo alguém que fez parte de um grupo de vertente socialista, mas também criticou abertamente diversos regimes de esquerda que seguiram caminhos muito diferentes daquilo que idealmente pregavam, como você acompanha a atual demonização do próprio socialismo e a ascensão da extrema-direita em diversas partes do mundo? Qual é a responsabilidade da própria esquerda e de seus erros pregressos nesse processo?

A dita esquerda (alguns nem seriam de facto de esquerda) cometeu de facto muitos erros, sobretudo a enorme capacidade de considerar inimigos os amigos do lado. As pessoas de esquerda têm uma enorme capacidade de se desunir. E por vezes têm a arrogância de considerar que só a sua verdade é A Verdade. O que permite que os verdadeiros opositores se unam e ganhem força, como actualmente acontece com a extrema-direita, a qual só tem apoio porque aparenta opor-se à ideia de esquerda que a própria esquerda deixou se instalar na cabeça das pessoas. Mas a extrema-direita nunca consegue mascarar durante muito tempo os seus verdadeiros propósitos. E o engano é facilmente desmascarado. Não é para durar. O Hitler dizia que o seu Reich ia durar mil anos. Durou pouco mais de dez. Mas provocou milhões de mortos, entretanto.

Você tem acompanhado a atual situação da política no Brasil? O que achou da chegada de Jair Bolsonaro ao poder? Como isso repercutiu entre os angolanos (se é que houve alguma repercussão)?

Sobre os angolanos não teve grande repercussão. Por enquanto. Os brasileiros que se encontram em Angola e que são bolsonaristas em maioria (a julgar pelos resultados eleitorais) não têm muita influência, nem têm muito acesso a órgãos de difusão de ideias. Os angolanos estão pouco virados para política externa neste momento, com mudanças no interior do país. Poucos terão realmente uma opinião fechada sobre o assunto.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.