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Quem são Marias, Mahins e malês, companhias de Marielle na Mangueira?

Rodrigo Casarin

07/03/2019 10h56

Desde que anunciou a homenagem à vereadora carioca Marielle Franco (Psol), assassinada com uma saraivada de tiros junto com o motorista Anderson Gomes há quase um ano, a Mangueira passou a estar (ainda mais) no centro das atenções deste carnaval. Pois a escola chegou na Sapucaí levando "a história que a História" não conta para a pista, fez um desfile deslumbrante (quem não viu, procure ver pelo menos a emocionante comissão de frente, com negros e indígenas tomando o lugar de pomposos figurões em quadros históricos) e, ontem, deixou o sambódromo com o título da competição.

Se bandeiras de Marielle marcaram o final do desfile da Mangueira, um dos trechos mais cantados de "História pra Ninar Gente Grande", seu samba-enredo, também menciona a vereadora assassinada: "Salve os caboclos de julho/ Quem foi de aço nos anos de chumbo/ Brasil, chegou a vez/ De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês". Os de aço nos anos de chumbo são, claro, aqueles que resistiram à ditadura civil-militar que vigorou no país entre 1964 e 1985. "Caboclos de julho" é, provavelmente, uma referência ao episódio da independência do Brasil que aconteceu em Salvador, na Bahia, de onde portugueses foram enxotados em julho de 1823. E as Marias, Mahins e malês, quem são?

Pois sigamos nas terras de Jorge Amado. Malês eram escravos trazidos de regiões muçulmanas da África e que, em muitos casos, sabiam tanto ler quanto escrever em árabe, raridade num Brasil onde a maioria da população foi analfabeta até meados do século 20. Em 1835, esses escravos se organizaram e se rebelaram contra seus senhores, numa luta pela liberdade e contra a imposição do catolicismo, naquela que ficou conhecida como Revolta dos Malês. Daqui que nasce o nome da Editora Malê, focada em literatura afro-brasileira. E para quem quiser saber mais sobre a revolta, uma boa pode ser o livro "Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês em 1835", de João José Reis (Companhia das Letras).

Os rebeldes logo foram reprimidos pelas forças oficiais e 16 líderes acabaram condenados à morte. Luíza Mahin, um dos nomes mais importantes daquele movimento, conseguiu escapar. Membro dos Mahi, tribo dos Nagôs, no Brasil Luísa se aproveitava do trabalho como quituteira para distribuir bilhetes com mensagens em árabe para os seus colegas explorados. Além do importante papel na Revolta dos Malês, também participou da Sabinada (esta contra o Império) e deu à luz Luiz Gama, poeta que se tornaria reconhecido pelos ideais abolicionistas. Dulceli Lima escreveu sobre ela em "Desvendando Luíza Mahin: Um Mito Libertário no Cerne do Feminismo Negro" (Multifoco).

"Marias", enfim, numa interpretação livre do samba, poderia simbolizar todas as Marias ou todas as mulheres que existem no país. No entanto, o verso se refere a uma Maria específica, como Deivid Domênico, um dos autores da letra, explicou em reportagem publicada pela Vice. Trata-se de Maria Felipa de Oliveira, descendente de escravos que liderou a resistência contra portugueses na ilha de Itaparica, numa ofensiva que aconteceu em 1822, às vésperas da independência brasileira. No ano passado seu nome foi incluído no "Livro de Heróis e Heroínas da Pátria".

E para quem quiser ir além do samba e conhecer mais sobre essa "história que a História não conta", recomendo fortemente o trabalho do historiador Luiz Antonio Simas, autor de "Coisas Nossas" (José Olympio) e "Ode a Mauro Shampoo e Outras Histórias da Várzea" (Mórula), especialista em retratar essas figuras que passam longe dos livros que lemos na escola. Não por acaso, ele assinou dois dos textos presentes no último carro da Mangueira.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.