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Miséria, prisão e guerras: a fantástica história de Luís de Camões

Rodrigo Casarin

19/02/2019 09h32

Não é de hoje que cavuco por aí histórias de escritores que dariam um bom livro. Miguel de Cervantes, criador de "Dom Quixote", por exemplo, foi gravemente ferido numa guerra e, depois, sequestrado por piratas e encarcerado durante anos. A vida de Domingos Caldas Barbosa foi menos violenta, mas, ainda assim, cheia de perrengues: sobreviveu à miséria, enfrentou preconceitos e transformou em arte as hipocrisias da sociedade portuguesa do século 18. Passeando pela simpática edição que a Nova Fronteira há pouco lançou de "Os Lusíadas", lembrei que Luís de Camões, o nome mais famoso da literatura em língua portuguesa e um dos gigantes de toda a história literária, também é dono de uma trajetória singular.

Já adianto: não é fácil recriar com precisão tudo o que o escritor viveu. Com poucos registros de suas andanças pelo mundo, o que temos é o delinear de uma história muitas vezes pautada mais na especulação e nas probabilidades do que em fatos consumados. O poeta Alexei Bueno não ignora essa questão ao esboçar a biografia do português na introdução da edição já citada. Ainda assim – ou, quem sabe, justamente por conta disso , o que lemos é empolgante.

Luiz Vaz de Camões nasceu, provavelmente, entre 1524 e 1525, em Lisboa, na época em que Portugal avançava sobre os mares em busca de terras para expandir o seu império. É provável que tenha passado a juventude em Coimbra, onde se dedicou aos estudos – talvez na Universidade local, talvez com um tio que teria se encarregado de sua educação. É depois dessa fase que o caos toma conta de sua vida.

Enquanto Portugal tentava conquistar terras no norte da África, foi enviado para combates em algum canto próximo a Ceuta, na ponta do Estreito de Gibraltar. Engalfinhando-se com mouros, tomou um balaço no olho direito, o que, além de deixá-lo caolho, valeu-lhe também o jocoso e exagerado apelido de "cara-sem-olhos" – ainda restava o esquerdo, pô.

De volta à terra natal, construiu sua fama de baderneiro, tanto que acabou preso por ter ferido um homem no dia de Corpus Christi – detalhes dão conta de que fez o ataque mascarado, junto com outro colega. "As cartas de Camões do mesmo período, que nos chegaram em apógrafos, no-lo mostram numa convivência boêmia com prostitutas e arruaceiros, descrevem variadas cenas de espancamento e comentam sobre ordens de prisão contra vários membros do grupo", conta Bueno.

Camões saiu da cadeia após receber um indulto do rei D. João III, que, em contrapartida, enviou escritor para servir em missões que se desdobravam no Oriente. Pelos indícios, esteve em regiões da Índia e da China. No rio Mekong, que corta o sudeste asiático, uma das passagens mais famosas e controversas de sua biografia: teria salvado a própria vida de um naufrágio utilizando apenas uma das mão para nadar, enquanto mantinha a outra para fora da água para resguardar os manuscritos do épico no qual já trabalhava. Há quem não bote fé nesse feito (com alguma razão, convenhamos), mas a passagem está registrada (ou imaginada) em uma das estrofes da famosa epopeia:

"Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço o Canto que molhado
Vem do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baixos escapado,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja Lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa"

Ainda passou por Moçambique até que retornasse a Lisboa, onde deu com a cara na porta ao procurar a família de Vasco da Gama, celebrado em "Os Lusíadas", para tentar se livrar da miséria que o acompanhou ao longo de toda a vida. Conseguiu publicar o seu colosso somente depois disso, em 1572, mesmo ano em que D. Sebastião lhe concedeu a pensão anual de 15 mil réis, uma "quantia de valor medíocre", aponta Bueno. Ainda longe da fama, foi-se no dia 10 de junho de 1580 sem jamais imaginar o quanto seria exaltado mesmo séculos após a sua morte.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.