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M. Madalena feminista X João de Deus: o oportuno livro de Rodrigo Alvarez

Rodrigo Casarin

19/12/2018 10h54

Maria Madalena pelo espanhol Luis Tristán, em pintura de 1616.

Correspondente internacional da Globo, Rodrigo Alvarez é conhecido do público tanto pelo seu trabalho na televisão quanto pelos livros religiosos que escreve. "Aparecida", "Maria", "Milagres" e "Humanos Demais", publicados pela Globo Livros, venderam dezenas de milhares de exemplares e transformaram o autor em uma espécie de best-seller da fé. "#MadalenaSemFiltro – Memórias Póstumas da Apóstola de Jesus", seu novo trabalho, acaba de sair pela Leya e, diferente dos escritos que o consagraram, trata-se de uma ficção.

Não que Rodrigo tenha inventado toda a vida de Maria Madalena, entretanto, apenas apostou fabulação para dar forma às pesquisas históricas que fez. Assim, narra em primeira pessoa os dias que a apóstola viveu ao lado de Jesus e como ela, do além, observou a Igreja vilipendiando seu nome. Mas a importância de Madalena junto a Jesus vem sendo ressignificada. Se por conta de uma gargantada do Papa Gregório em 591 ela passou séculos sendo pejorativamente tratada como prostituta, novas visões históricas mostram que era uma das mais fiéis parceiras de Cristo e que não há indícios de que costumava fazer dinheiro alugando o seu corpo.

Essa visão contemporânea de Madalena a fez ser adotada por muitos como um símbolo feminista e é justamente essa faceta que mais interessa ao autor. Ao final de "#MadalenaSimFiltro", Rodrigo assume que a escrita da obra foi fortemente influenciada por movimentos como o #MeToo, que abalaram da indústria do cinema ao Nobel de Literatura e se espalharam pelo mundo incentivando mulheres a denunciar os abusos machistas sofridos ao longo da vida. Para um autor imerso na história do cristianismo, falar sobre os vilipêndios de homens – muitos deles santificados pela Igreja – contra Madalena era uma bola na fita pronta para ser cravada na quadra adversária.

"Do jeito que falaram, foi como se eu tivesse saído pela Galileia oferecendo meu corpo, usando óleos perfumados sobre minha pele para seduzir os homens…
Não o fiz!
Mas… e se tivesse feito?
Falam como se prostitutas fossem piores do que assassinos.
Enfim, falaram tudo aqui de mm como se não fosse possível uma mulher ser apenas companheira, e muito humildemente, conselheira de Jesus nos momentos em que ele precisou.
Enquanto sigo a procissão, e vejo meus mais antigos defensores, os frades dominicanos, levando minha cabeça erguida, reparo com alegria que a ex-prostituta agora merece respeito não só deles, mas de toda a Igreja.
Quem ainda tem dúvida de que estou finalmente reconquistando um pouco do que Pedro me tornou ao construir uma igreja em que tudo é masculino?
E penso que minha conquista, ainda que gradativa, é também uma conquista das mulheres. Meu ressurgimento é consequência de um novo tempo. Ou ainda não entenderam que meu nome só saiu das trevas porque as mulheres passaram a litar unidas contra os abusos?
Se é verdade que me tornei um espelho da mulher moderna, é verdade também que a mulher moderna se tornou um espelho para mim", diz a Madalena de Rodrigo no início da obra, que logo segue:

"O que fizeram comigo foi coisa de homens…
A misoginia nossa de cada dia.
Perdoe a franqueza, meu Deus!
Perdoe também se não peço licença.
Mas agora quem vai contar minha história sou eu".

Aqui e ali aparecem referências a Umberto Eco, Guimarães Rosa e Machado de Assis – este já escancarado no título e na opção pela narradora defunta. Apesar disso, o leitor não deve se enganar com referências a grandes escritores. Como é possível perceber nos trechos acima, a escrita de Rodrigo é extremamente simples. Não há brilho literário algum em "#MadalenaSimFiltro". Não que isso seja um grande problema, principalmente levando em conta o público do autor. Pessoas que costumam fazer leituras dogmáticas de livros religiosos e sobre religião deverão ser impactadas pela história narrada do ponto de vista de Madalena e poderão pensar um pouco sobre o papel relegado às mulheres ao longo da história e a importância de lutas feministas.

Numa época em que pululam casos de homens glorificados se aproveitando da fé alheia para cometer crimes – vide padres da Igreja Católica, vide denúncias contra pastores, vide João de Deus e seu advogado "acusando" pateticamente uma das vítimas de ser justamente prostituta –, é essencial que as mulheres saibam quão importante é impor sua voz, é não deixar que outros a invadam, que outros dominem sua própria história. É importante que se sintam impelidas e seguras para denunciar abusos sexuais e de poder até que os culpados sejam exemplarmente punidos.

Num país com tanto sincretismo religioso, ensinamentos podem vir pela história de religiões que não estão necessariamente no centro da fé de cada um, creio. Nesse sentido, o papel que "#MadalenaSimFiltro" pode assumir é fundamental: via um ícone cristão, mostrar a importância do feminismo para pessoas que pouco se importam ou até mesmo repudiam tal movimento.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.