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Direitos humanos, Antonio Candido e a literatura como bem imprescindível

Rodrigo Casarin

26/10/2018 10h45

Foto: Raquel Cunha/ Folhapress.

Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à proteção da lei.

A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado.

Toda pessoa, individual ou colectiva, tem direito à propriedade.

Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.

Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos.

O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade.

Esses são alguns pontos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento esboçado logo após o final da Segunda Guerra Mundial e pensado para que os países caminhassem rumo a sociedades mais justas, nas quais todas as pessoas fossem tratadas com dignidade. Impactados com as barbaridades cometidas pelos nazistas, países como Estados Unidos e França atuaram fortemente na elaboração do documento que foi aprovado em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, a ONU.

Os tópicos da Declaração ainda garantem que "Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante" e, dentre outros pontos, que "Todos são iguais perante a lei". Não sei dizer se algum país já respeita integralmente as diretrizes do documento, mas, numa história que está em permanente construção, parece-me primordial termos sempre em vista que precisamos caminhar em direção ao que defende a Declaração para arquitetarmos uma sociedade mais harmoniosa, não no sentido contrário.

Como bem disse certa vez o uruguaio Eduardo Galeano, a utopia é uma linha no horizonte que norteia o caminho que devermos trilhar; ainda que nunca alcancemos essa linha, ela faz com que andemos para frente, no sentido correto. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é uma utopia da qual o Brasil – ou qualquer outro país – jamais deveria abrir mão. Só que, infelizmente, há algum tempo muitos brasileiros, incentivados por informações deturpadas e políticos demagogos, irresponsáveis ou com inegável tino para carniceiros, andam torcendo o nariz ou apedrejando o valioso tratado.

Relendo o ensaio "O Direito à Literatura", publicado em 1988 por Antonio Candido, o maior crítico literário de nossa história (que o resumiu suas ideias no vídeo acima), percebo que algo saiu dos eixos no passado recente. Vejam o que ele escreveu há três décadas (o texto na íntegra está aqui):

"É verdade que a barbárie continua até crescendo, mas não se vê mais o elogio, como se todos soubessem que ela é algo a ser ocultado e não proclamado. Sob este aspecto, os tribunais de Nuremberg foram um sinal de novos tempos, mostrando que já não é admissível a um general vitorioso mandar fazer inscrições dizendo que construiu uma pirâmide com as cabeças dos inimigos mortos, ou que mandou cobrir as muralhas de Nínive com as suas peles escorchadas. Fazem-se coisas parecidas e até piores, mas elas não constituem motivo de celebração. Para emitir uma nota positiva no fundo do horror, acho que isso é um sinal favorável, pois se o mal é praticado, mas não proclamado, quer dizer que o homem não o acha mais tão natural".

Sabemos que os apologistas da barbárie voltaram a dar as caras por aí, a berrar em alto e bom som que desejam metralhar os outros, a declarar louvas a torturadores e a prometer perseguir e expurgar aqueles que enxergam como inimigos políticos.

No ensaio, Candido julga que os direitos humanos possuem um pressuposto: "reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo". Dessa forma, defende a literatura como um direito universal. "Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação", escreve, para depois lembrar que os valores que cada sociedade preconiza ou repudia estão presentes em romances, contos, poemas, peças de teatro… "A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas".

Ainda pego a ideia de Candido para falar sobre o impacto que a literatura tem nas pessoas. Para ele, tal arte traz em si "o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver". O mestre também explica que entende a humanização como "o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante".

Num mundo em que a literatura fosse não apenas um direito, mas um bem universal por todos usufruído, creio que os imprescindíveis direitos humanos seriam melhor compreendidos. Revólveres e metralhadoras são importantes, sim, mas desde que estejam nas mãos de pessoas bem preparadas, equilibradas, que atuem rigorosamente conforme as leis com inteligência, discernimento e parcimônia, jamais com o ódio ou a raiva tomando o lugar da plena razão. Para caminharmos para uma sociedade mais digna, no entanto, é mais importante apostarmos nos livros do que nas armas, disso não tenho dúvidas. Como finaliza Candido, "uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável".

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.