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Ana Maria Machado sobre acusações: tão absurdo que não sei como reagir

Rodrigo Casarin

07/09/2018 12h22

Foto: FolhaPress.

Ana Maria Machado, um dos maiores nomes da nossa literatura infantojuvenil, vem sofrendo ataques por conta do seu livro "O Menino que Espiava Pra Dentro" (Global), publicado originalmente em 1983. Pais acusam a autora de fazer apologia ao suicídio para crianças por conta de uma cena na qual Lucas, o protagonista da narrativa, planeja engasgar com um pedaço de maçã para, dessa forma, conseguir viver no mundo de sua imaginação. Falei a respeito deste assunto aqui e agora a escritora também se posiciona sobre a polêmica. Veja a entrevista que Ana Maria concedeu há pouco ao blog:

Como você reagiu ao saber que pais estavam acusando "O Menino que Espiava Pra Dentro" de fazer apologia ao suicídio para crianças?

Eu soube ainda no corredor de um avião, numa escala em Brasília, de um voo de horas, que vinha de Santarém via Manaus, voltando de um encontro com professores patrocinado pela universidade local. Entre saltar de um avião e correr para outro que estava encerrando o embarque, recebi um telefonema de meu filho e um e-mail da editora, contando o que estava acontecendo com essas mensagens viralizando nas redes sociais. No primeiro momento, não pude avaliar a extensão, só fiquei incrédula. Tarde da noite, ao chegar em casa, no Rio, verifiquei quanto aquilo tinha se espalhado. Fiquei meio em estado de choque, como se tivesse levado um tiro de um franco-atirador que não sei onde se escondia. Ou como se viesse passando pela rua e me caísse na cabeça uma bigorna que me achatou. É tão absurdo que a gente não sabe como reagir. Mas, por outro lado, a avalanche de mensagens de apoio e carinho, num tsunami de solidariedade, me mostrou como eu não estou sozinha, e agradeço a todos.

A obra foi publicada originalmente em 1983. Desde então, já havia recebido alguma acusação desse tipo? Aliás, nos seus quase 50 anos de carreira, já lhe aconteceu algo semelhante?

Nunca, jamais. Por isso, como qualquer pessoa, me sinto muito despreparada para lidar com a situação.

Quando você escreveu "O Menino que Espiava Pra Dentro", quais tipos de reflexões e discussões você pensava em suscitar o levantar com as crianças? Se é que tinha algo nessa linha em mente, claro.

Quando escrevo uma história, em grande parte o processo é inconsciente. Não fico procurando enviar mensagens. Mas é claro que cada história, simbolicamente, vai configurando uma rede de reflexões. Essa girava em torno de imaginação e realidade, e da solidão do filho único que quer um irmãozinho, cria um amigo imaginário, deseja cada vez mais viver num mundo de sonhos com esse personagem inventado, mas acaba ganhando dos pais um cachorro que preenche sua realidade. Uma ideia ligada a essa situação era valorizar a imaginação infantil, mas frisar que a realidade é muito importante, até porque é ela quem alimenta a imaginação. E que nada substitui o afeto. Como me disse ontem uma crítica e blogueira, "é uma elegia à vida".

O que você tem a dizer para esses pais que agora lhe acusam?

Posso ser uma ingênua, mas creio que, na maioria dos casos, essa acusação irresponsável, leviana e cruel não nasce de uma maldade gratuita, mas de uma insegurança e preocupação com os filhos, vistos como "sujeitos aos perigos do mundo". Em alguns casos, porém, postagens feitas por pessoas diferentes contam o mesmo caso, com as mesmas palavras, narrando os detalhes de algo que, supostamente, teria acontecido com "meu filho" (o delas) ao chegar da escola, etc. Isso sugere má fé de parte de alguns, pois as mensagens são iguais, mandadas a sua rede de contatos, como se o diálogo assustador tivesse acontecido com diferentes crianças ao mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias.

Não sei muito o que dizer, a não ser que há um ponto de partida positivo: os pais fazem bem em se preocupar com o que os filhos leem e devem mesmo ler junto com eles. E também, ler sozinhos, ler mais, se acostumar muito com a leitura de literatura – para perder o medo da linguagem simbólica e entender como funciona a linguagem nessa função de contar histórias e fazer ficção (ou seja, inventar enredos e personagens que não são reais). Se uma criança gosta de livros de sereias, não quer dizer que deseje se afogar para viver no fundo do mar. Se outra ama histórias de anjinhos, não significa que quer se jogar de uma montanha sobre uma nuvem para viver com eles. Mas, por outro lado, qualquer pessoa de bem deve saber do que fala antes de espalhar acusações graves e levianas desse tipo. Até mesmo porque é crime acusar alguém de um crime grave como esse (como indução a suicídio de menor).

Você acha que esse movimento é, de alguma forma, um reflexo do momento pelo qual o país atravessa?

Acho, sim, um nítido reflexo. E já escrevi todo um romance (para adultos) sobre isso, o premiado "Infâmia" (Alfaguara). É uma época de denúncias levianas e de irresponsabilidade, que está fazendo muito mal ao país como um todo. Vivemos um momento em que há uma perigosa mistura de ódios, intolerância, fanatismo e superficialidade, em que falta diálogo e desacostumamos de ouvir os outros.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.