Topo

Sem magia, Cristiano Ronaldo é o vislumbre de um futebol muito Black Mirror

Rodrigo Casarin

25/06/2018 09h07

"Olhem para vocês – disse ele por fim. – Não digo isso com desdém, mas olhem para vocês! A matéria de que são feitos é macia e flácida, sem resistência nem força, e depende de uma oxidação ineficiente de matéria orgânica para obter energia… como aquilo. – Ele apontou o dedo para o que restava do sanduíche de Donovam com ar de desaprovação. – De tempos em tempos, vocês entram em coma e a menor variação de temperatura, pressão do ar, umidade ou intensidade radiativa prejudica a sua eficiência. Vocês são provisórios. Eu, por outro lado, sou um produto acabado. Absorvo energia elétrica de forma direta e a utilizo com uma eficiência de quase 100%. Sou composto de um metal resistente, meu estado de consciência é ininterrupto e posso suportar as condições extremas do ambiente com facilidade".

Em "Eu, Robô" (Aleph), um dos grandes clássicos da ficção científica, Isaac Asimov traçou regras para o comportamento robótico dentro de seu universo e projetou a relação entre máquinas e humanos. O livro virou filme em 2004, com um longa homônimo estrelado por Will Smith. Se fosse rodado hoje, bem que um jogador de futebol poderia fazer parte do elenco. Sei que já virou clichê chamar Cristiano Ronaldo de robô, mas paciência, às vezes mais vale uma obviedade precisa do que uma originalidade capenga.

A Copa de CR7 até aqui é impressionante (atualização às 23h19 do dia 25/06: o texto foi escrito e publicado antes do jogo entre Portugal e Irã). Cômico, mas realmente ele pouco fez além de sofrer um pênalti e marcar todos os gols de Portugal, sendo três deles contra a Espanha. Contudo, o atacante se construiu para isso: ser um jogador fatal, um dos mais letais da história, símbolo máximo de uma era na qual imperam o comportamento tático e a força física. Lembro que um dia já enxerguei certa magia no futebol de Cristiano Ronaldo, talvez em sua versão Manchester United, quando ainda estava bem distante do que é hoje. Temporada após temporada, no entanto, o cara foi se aperfeiçoando, afinando as engrenagens e se transformando nesse androide quase infalível.

Cristiano Ronaldo se fez uma máquina. Praticamente não há arte em suas pernas, apenas engenharia. É o self-made man do futebol, não o gênio de talento inato que, em campo, ninguém jamais conseguiria deter. CR7 me encanta pouco, não chega nem perto do que é ver um grande jogo de Neymar (quando resolve ficar de pé) ou Messi, mas tenho certeza de que ele não está muito preocupado com isso. Está, sim, preocupado em aperfeiçoar sua infalibilidade, em ser um produto acabado que suporta condições extremas de qualquer ambiente. Está em busca de, quem sabe, subverter a lógica, ir além do 100% de eficiência e conseguir fazer dois gols com apenas um chute.

Em "Eu Robô", Asimov, esmiuçando máquinas de seu mundo, nos dá um vislumbre do que talvez tenha se transformado a composição de Cristiano Ronaldo: "Tinha pouco mais de 2 metros e meia tonelada de metal e eletricidade. Era muito? Não quando essa meia tonelada corresponde a uma massa de condensadores, circuitos, interruptores eletromagnéticos e células de vácuo que conseguem dar conta de quase toda reação psicológica conhecida pelos humanos. E um cérebro positrônico, cada um dos quais com uns 4,5 quilos de matéria e alguns quintilhões de pósitrons, comanda todo o show".

É isso, Cristiano Ronaldo se fez um jogador de condensadores, circuitos e quintilhões de pósitrons. Só não exija shows da máquina. Ela está aqui para ser plenamente precisa e eficiente, não encantadora. Já pensou como seria um jogo apenas com Cristianos Ronaldos em campo? Acho que quem jogava "Mega Man Soccer" no Super Nintendo consegue arquitetar essa distopia. Sim, porque um jogo feito somente de atletas robóticos seria tão empolgante quanto o funcionamento de uma fábrica altamente tecnológica: sem graça alguma, terrível. Pensar numa proliferação de CR7s é vislumbrar um futebol muito "Black Mirror".

Gostou? Você pode me acompanhar também pelo Twitter e pelo Facebook.

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.