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O dia em que Gabo perdeu o “senso de ridículo” e se apaixonou por futebol

Rodrigo Casarin

19/06/2018 08h10

E a Copa da Rússia começa, enfim, para a Colômbia. Para quem vive entre livros, impossível não lembrar de Gabriel García Márquez sempre que ouve o nome de seu país. Autor, dentre outros, da obra-prima "Cem Anos de Solidão", um dos clássicos literários do nosso continente, "O Amor nos Tempos de Cólera" e "Crônica de Uma Morte Anunciada", além de ter levado para casa o Nobel de 1982, o magistral escritor era também um amante do futebol.

Com a expectativa de ver os colombianos fazerem uma vitoriosa Copa nos Estados Unidos, em 1994, onde a seleção chegou após uma grande campanha nas eliminatórias, com direito a 5X0 sobre a Argentina em Buenos Aires, Gabo ousou apostar um carro com um amigo acreditando que a taça ficaria nas mãos de Asprilla e companhia. A aposta vinha com uma condição: Valderrama, figura icônica daquele time, teria que se recuperar de uma lesão e estar em campo. A recuperação do cabeludo aconteceu, porém a Colômbia caiu na primeira fase, decepcionando não apenas o escritor, mas todo o país – só não sabemos se o autor, afinal, pagou ou não a aposta.

Mas é provável que Gabo logo tenha achado outras seleções para se maravilhar. Nas suas palavras, "para quem realmente gosta de futebol, não importa quem ganha ou quem perde, porque só assistir ao jogo já é um grande e belo espetáculo". Essa é uma das frases do escritor sobre o esporte disponibilizadas pelo Centro Gabo, que se dedica a preservar seu nome. Há outras, claro, como esse olhar sobre René Higuita, um dos goleiros mais malucos e abusados de toda história, que fez lambança na Copa de 1990, quando, nas oitavas, foi enfeitar no meio de campo, entregou a paçoca e viu Roger Milla anotar o gol que ajudaria Camarões a ficar com a vaga nas quartas:

"Higuita é um caso muito colombiano. Nós colombianos somos capazes de fazer qualquer coisa, mas sempre com um toque de loucura. Isso é muito latino-americano também. Higuita é um grande goleiro, mas você tem que saber que, além disso, ele também é um jogador de beisebol; então ele gosta de correr e quando a bola não chega até a meta, quer sair para jogar, porque fica entediado. Isso aconteceu com todos nós quando éramos crianças, se nos enchíamos no gol, não resistíamos e saíamos atrás da bola". Gabo também registrou qual foi o melhor jogo de mundial que assistiu: "A melhor partida que de Copa que vi na minha vida foi o Brasil contra Itália no ano de 70, no México", clássico que acompanhou junto de seus filhos em sua casa mexicana.

Mais recentemente, a estrela da literatura ganhou homenagens vindas do universo do futebol. Nas eliminatórias para a Copa de 2014, a Colômbia utilizava em seus jogos como mandantes uma bola chamada Macondo, referência ao povoado de "Cem Anos de Solidão". Já no último 6 de março, quando completaria 91 anos se estivesse vivo, a singela lembrança veio do Bayern de Munique, que usou uma jogada do também colombiano James Rodrigues para ilustrar a frase que mencionei no terceiro parágrafo:

A referência mais famosa de Gabriel García Márquez ao futebol vem de um texto escrito há mais de seis décadas, em junho de 1950. Na crônica "O Juramento", Gabo recorda de quando esteve pela primeira vez em um estádio. E foi principalmente para ver um brasileiro: Heleno de Freitas, jogador genial, esquentado e polêmico, que na época, após brilhar no Botafogo e passar pelo Boca e Vasco, vestia a camisa do Junior de Barranquilla. O adversário da vez era o Millonarios, também com uma gigantesca estrela em seu elenco: Alfredo Di Stéfano, que logo rumaria para o Real Madrid, onde se transformaria no maior ídolo da história do clube merengue.

A vitória do Junior por 2X1 foi decisiva para que Gabo se apaixonasse pela equipe. Mais do que isso, naquela ocasião o então jovem jornalista conseguiu compreender toda a loucura e paixão que envolvem o futebol. Após mencionar os amigos que o levaram ao estádio, escreveu:

"Deviam suspeitar que em algum momento eu ia me converter nesse energúmeno, sem qualquer verniz que possa ser considerado como o último rastro de civilização […]. No primeiro momento de lucidez em que me dei conta de que tinha me transformado num torcedor intempestivo, notei que durante toda a minha vida eu tive algo do qual sempre me orgulhei e que agora me incomodava de modo inaceitável: o senso do ridículo […]. Uma das condições essenciais do torcedor é a aceitação da perda absoluta do senso de ridículo". E, ao cabo daqueles 90 minutos, Gabo acolheu o seu lado pouco racional e escreveu que, definitivamente, fazia parte da "santa irmandade dos torcedores".

E se Gabo foi ao estádio para ver Heleno de Freitas jogar, saiu de lá encantado também com o atleta. "Se os jogadores do Junior não fossem jogadores, mas escritores, me parece que o maestro Heleno teria sido um extraordinário autor de romances policiais. Seu calculismo, seus movimentos cadenciados de investigador e finalmente suas soluções rápidas e surpreendentes lhe dão méritos suficientes para ser o criador de um novo detetive".

Que a Colômbia escreva uma bela história nos gramados russo, Gabo, ainda que na memória, merece.

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Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.