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Tocante, “Jeremias - Pele” é uma oportuna HQ sobre racismo na infância

Rodrigo Casarin

15/05/2018 08h37

É famoso um vídeo no qual o astrofísico pop Neil deGrasse Tyson lembra de como a sociedade reagia quando ele revelava o desejo de ser cientista e pesquisar sobre o universo, decisão tomada aos nove anos, após visitar um planetário. Como assim um garoto negro dos Estados Unidos, nascido no final da década de 1950, queria ser um estudioso? Não seria melhor seguir a carreira de atleta? Almejando algo diferente das expectativas que os outros tinham com relação a ele, Neil precisou vencer diversas barreiras para que se transformasse em um dos nomes mais famosos do mundo em sua área – o vídeo com a história está no final do post.

Situação semelhante é vivida por Jeremias. Na escola, ao preparar as crianças para uma atividade, a professora arbitrariamente escolhe qual profissão cada aluno deverá interpretar: um será médico, outro engenheiro, ator… Jeremias, por sua vez, será o pedreiro. Ao dizer que preferia fazer as vezes de um astronauta, ouve da professora que aquilo seria muito incomum, enquanto seus colegas brancos gargalham na sala de aula.

A passagem está em "Jeremias – Pele", HQ de Rafael Calça e Jefferson Costa publicada pelo Graphic MSP, selo que convida importantes quadrinistas nacionais para dar novas formas e histórias a consagrados personagens de Mauricio de Sousa. No caso, óbvio, a dupla cria uma narrativa para Jeremias, uma das primeiras crianças imaginadas por Maurício. E se Jeremias é um dos raros personagens negros no bairro do Limoeiro, é um acerto aproveitá-lo na construção de uma graphic novel sobre racismo.

Seja mostrando chacotas como "O cabelo já é o capacete, cara! Mó duro!", frase ouvida pelo próprio Jeremias, seja representando a arbitrariedade policial ao abordar de forma violenta e injustificada o pai do personagem – que entrega a carteira de trabalho ao PM, lição que Calça aprendeu ainda na infância: andar sempre com um documento que comprove ser trabalhador -, o trabalho de Calça e Costa é delicado, tocante e ao mesmo tempo de grande força. Difícil não se emocionar e se colocar para refletir ao ver os sonhos do pequeno Jeremias sendo esmigalhados pela nefasta realidade. Realidade dura e difícil de ser mudada, escancarada em uma das falas de seu pai, numa bronca após o protagonista ter brigado na escola:

"Porque você é negro, Jeremias! Se você for briguento, não vão dizer que você foi provocado, vão dizer que é porque você é negro! Se não entender algo, se disser alguma coisa errada, vão dizer que é porque você é negro! É assim que as coisas são! Você vai ter que ser duas vezes mais paciente, duas vezes mais esperto! Se não for duas vezes melhor, nunca vai ser tratado como igual! Vai ter que endurecer, filho! Criar uma casca dura, entendeu?"

Na introdução do livro, Mauricio de Sousa diz imediatamente ter aprovado a ideia de uma HQ que abordasse o problema do racismo desde a infância. "Nas minhas historinhas, o Jeremias sempre viveu num ambiente ideal, no qual eu acredito, em que todos convivem em harmonia, independente da cor da pele. Mas sei que, infelizmente, não é assim na vida real". E é ótimo ver personagens de Mauricio mostrando ao leitores um pouco do que é a vida real, não apenas a ideal.

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Veja algumas imagens de "Jeremias – Pele":

E o vídeo do Neil deGrasse Tyson:

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.