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Obra-prima de “Walt Disney japonês” mostra realidade cara aos brasileiros

Rodrigo Casarin

17/04/2018 10h11

"Sabe? Pesquisei o passado da família Tenge. E acabei descobrindo que nossa árvore genealógica é uma fossa".

A constatação é do jovem, destemido e perspicaz Shiró, mais um Tenge que se afoga no lodo familiar. Por trás da fachada de um clã japonês aristocrático, rico, detentor de muitas terras e respeitável, a realidade é bem diferente. Entre os Tenge há chantagens, estupros, um filho que entrega a própria mulher para que seu pai se satisfaça sexualmente e mais uma infinidade de violências e imoralidades.

Em um momento exemplar, familiares se reúnem para decidir o que fazer com Ayako, garotinha que tem uma informação comprometedora sobre o aparente assassinato de Aryó. "O que quer que ela possa dizer, aposto que é algo que pode manchar o nome da família Tenge", alerta Sakuemon, o patriarca. "Assim… Eu convoquei esta reunião para decidir o que fazer com ela", continua. Insatisfeitos com a polícia se envolvendo no caso e com a mancha que isso poderia trazer para o clã, um sugere mandar Ayako para parentes distantes. Outro, mais radical, dá a ideia de simular a morte da garota e trancafiá-la em um porão para que nunca mais apareça em público, até que de fato morra. A proposta agrada.

"Ela nasceu com esse destino… não há o que fazer. Ou você prefere que o nome Tenge seja manchado?! Além disso… quer que a casa Tenge seja vista com desprezo pelo povo?", retruca alguém quando um monge se assusta com ideia. "N-n-não, isso me causaria problemas também. E meu templo tem crescido graças às doações de sua família", imediatamente reage o homem de fé, mudando de posição ao ver a possibilidade do dinheiro minguar. Outras vozes aparecem com posição semelhante: "Meu nome é ligado ao dos Tenge, se houver problemas, minha loja vai perder clientes", "Não quero ver ninguém do clã Tenge preso", "Meus filhos também podem se sentir humilhados"… O trágico destino de Ayako estava assim decidido pela sua família realmente digna de preencher uma fossa qualquer.

A hipocrisia que está no seio familiar de muita gente que gosta de bradar por aí que possui berço – ou que é "cidadão de bem" – é apenas uma das tessituras de "Ayako", mangá do japonês Osamu Tezuka. Apontado como um dos melhores quadrinhos de todos os tempos, a obra foi publicada originalmente entre 1972 e 1973 na revista Big Comic. Agora, a HQ completa está disponível por aqui em um único e imponente volume – são 720 páginas – que a Veneta acaba de lançar. A edição inclui pela primeira vez no Ocidente os dois finais criados por Tezuka para a história.

Políticos sem limites

A garotinha cujo destino pode fazer com que o leitor se lembre de "O Segredo dos Seus Olhos", filmaço argentino vencedor do Oscar para produções estrangeiras de 2010, divide o protagonismo do mangá com Jiro Tenge, seu irmão. Feito prisioneiro pelos norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial, Jiro descobre um dos nefastos segredos de sua família quando enfim retorna à casa. Contudo, ele também tem seus podres e logo se afasta do clã para tocar a própria vida ao seu modo.

Envolvido com negócios ilegais, é Jiro quem protagoniza algumas das cenas que mais parecem caras à atual realidade brasileira. Em certo momento, ouve de um de seus comparsas: "O custo de mantermos políticos do partido Seyuka aumentou em 15% em relação ao mandato anterior. Será que eles vão ajudar quando realmente precisarmos deles? Esses políticos, por mais que você dê dinheiro a eles… Eles não têm limites. Por favor, pare de se relacionar com os políticos… São desonestos". Familiar, não?

Se hoje os políticos japoneses são tidos como uma referência em honestidade – ou pelo menos veem essa imagem sendo comprada pelo senso comum -, não custa lembrar que até algumas décadas atrás a realidade era bastante diferente. Nesse sentido, também é simbólica a maneira como Jiro se refere a Tóquio, uma das capitais mais badaladas dos nossos dias:

"O céu é sujo. A cidade cheira mal. E 10 milhões de pessoas vivem aqui, espremidas. A cada minuto um ser humano morre… E o ser humano não é tratado como ser humano. E mesmo assim vivem satisfeitos. Aqui é uma cidade cheia de tolos" – poderia ser eu falando de São Paulo. São instantes da arte que podem indicar aos brasileiros que mudanças sempre são possíveis, por mais que a realidade muitas vezes pareça não nos dar esperanças.

Mas "Ayako" não é sobre o Brasil ou para o Brasil, evidentemente. Alternando o foco entre Jiro e Ayako até que ambos conduzam a trama ao seu final, Tezuka reconstrói o Japão do pós-guerra. Mostra a ocidentalização pela qual o país passou na segunda metade do século 20, a maneira como foi impactado pela Guerra Fria – com os partidos de esquerda e movimentos populares sendo sistematicamente perseguidos -, a luta de classes, o conflito entre grupos mafiosos e o nebuloso crescimento da famosa e poderosa Yakuza. Permeando todas essas questões, há ainda uma sociedade profundamente marcada pelo machismo.

"A princípio, queria escrever algo como 'Irmãos Karamázov', de Dostoiévski, em que descreveria o relacionamento de várias personagens de uma família dentro do contexto histórico do pós-guerra. Não me interessava contar uma história linear do pós-guerra, portanto transformei os Tenge em fio condutor. Numa família abastada, com costumes de uma época anterior à Grande Guerra, as ideologias se enfrentam violentamente. E dentro desse emaranhado de conflitos pensei em descrever a vitalidade do povo japonês", registra Tezuka no texto que serve de posfácio à edição.

"Tezuka, mais que tudo, foi um artista"

Apontado como uma espécie de Walt Disney oriental – o próprio autor assumia tal referência -, Tezuka, que morreu em 1989, também assinou trabalhos como "Buda", "Adolf" e "Astro Boy". No entanto, no prefácio de "Ayako", Rogério de Campos, editor da Veneta, aponta algumas diferenças substanciais entre o norte-americano e o japonês. "Para começar, enquanto Tezuka era um desenhista impressionantemente prolífero e criativo, Disney mal desenhava, nem mesmo sua famosa assinatura é criação dele. Disney foi um empresário. Tezuka, mais que tudo, foi um artista. E enquanto Disney colocava 'sua' assinatura em histórias em quadrinhos produzidas por artistas anônimos, seu fã japonês era um grande incentivador de novos autores".

Além disso, a relação de ambos com os interesses do governo de seus respectivos países sempre foi distinta, aponta Rogério. "É bem sabido que, quando o macarthismo invadiu Hollywood, Disney foi correndo se oferecer como dedo-duro na caça aos comunistas". Tezuka, por sua vez, defendeu sua classe quando os governantes começaram a perseguir os mangás, que se "excediam" na liberdade artística, "abusando" do sexo e da violência. Ele "falou publicamente contra a censura e pelo direito dos quadrinhos tratarem de todos os temas" e criou uma revista na qual colegas podiam "fazer suas experimentações e tratar, com total liberdade, de todos os tipos de temas".

Nesse momento, Tezuka decide fazer quadrinhos adultos "sujos", que "retratam todos os aspectos do mundo, inclusive os mais terríveis", segue o editor. Todo esse contexto, bem como os impactos da Guerra do Vietnã, servem de terreno para que o artista crie "Ayako".

"'Ayako' começa quando a Guerra acabou. Não mostra batalhas e não fala das pessoas que passavam fome nas ruas do país. Fala das elites: a aristocracia rural, a alta burocracia, os ricos, os líderes políticos nacionais… Aqueles que nunca passam fome, mas que representam tão bem certo tipo de miséria, a moral. A hipocrisia e o cínico egoísmo com que, por trás da pompa e do suposto respeito às tradições, vão se acomodando confortavelmente em todas as situações. Assim como lucram com a guerra, lucram colaborando com as Forças de Ocupação e vão lucrar depois, vendendo pedaços do Estado para a Yakuza. 'Ayako' é a grande história do Japão pós-guerra contada pelo maior de seus quadrinistas", comenta, enfim, Rogério.

Não é só aparência, "Ayako" realmente é um quadrinho colossal.

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Veja mais algumas imagens do mangá:

Sobre o autor

Rodrigo Casarin é jornalista pós-graduado em Jornalismo Literário. Vive em São Paulo, em meio às estantes com as obras que já leu e às pilhas com os livros dos quais ainda não passou da página 5.

Sobre o blog

O blog Página Cinco fala de livros. Dos clássicos aos últimos sucessos comerciais, dos impressos aos e-books, das obras com letras miúdas, quase ilegíveis, aos balões das histórias em quadrinhos.